Tendo em vista os encômios que Bolsonaro e sua caterva teceram à ditadura militar, alcunhando-a de “movimento patriótico”, republico texto que escrevi há quase vinte anos e que ratifico integralmente agora. Eis aí:

Em belíssimo artigo publicado nos idos de 2004, o editor Isaac Maciel deu a sua visão do golpe militar que se abateu sobre o Brasil no 1º de abril de 1964. O autor destaca que fala em retrospectiva porque, à época mesma dos acontecimentos, tinha ele apenas três anos de idade.

Não pude reprimir um sentimento de inveja do editor que, infante, não vivenciou o que foram aqueles dias de terror, insegurança, ódio e medo.

Menos feliz que ele, tinha eu já vinte e um anos quando o presidente da República foi deposto e teve início a mais longa ditadura da história nacional. Causa pavor até falar do assunto.

Em três pontos básicos se sustentava a doutrina dos militares no poder: eram eles os únicos com patriotismo suficiente para amar o Brasil; igualmente, eram os únicos imunizados contra o vírus da corrupção; e, last but not least, cultivavam um ferrenho anticomunismo que beirava a histeria.

Dessa tolice tripartite surgiu um regime que feriu de morte os anseios libertários do povo e que, não satisfeito com a quebra da normalidade constitucional, conseguiu se auto-superar nos idos de 1968, em cujo dezembro veio à luz o mais execrável instrumento da opressão: o Ato Institucional número 5, o AI-5, como era carinhosamente chamado na intimidade dos “juristas” a serviço da nova ordem.

Uma das vezes em que fui detido, levaram-me para o quartel do Grupamento de Elementos de Fronteira – GEF, que ficava na ilha de São Vicente. Ali, um major carrancudo, com umas pintas (vermelhas, por incrível que pareça) espalhadas pela face, depois de nos humilhar, a mim e ao companheiro que também participava da sessão, concluiu com um tom apocalíptico: “se eu confirmar que vocês são mesmo comunistas, vou mandar matá-los”. Felizmente, para nós, os arquivos do Partidão nunca primaram pela organização (por motivos óbvios) e, também, o famigerado SNI ainda não havia atingido os níveis excelentes de arapongagem a que depois foi alçado.

Tristes tempos. A única válvula de escape era a mangoça, a ironia, e com que avidez buscávamos os exemplares do Pasquim, semanário que, entre um e outro empastelamento, conseguia, com graça, traduzir os nossos  sentimentos de revolta. Lembro-me da manchete do exemplar que surgiu depois de a redação do jornal ter sido virada e revirada por uma blitz policial: “O bom de ser culto é que a gente vai levando pau latinamente”.

Passou. Felizmente passou, porém, como diz o cancioneiro popular, “quem ofende sempre esquece o que fez, mas quem sofre não esquece”. E é bom que não esqueça mesmo, até para impedir a repetição da ofensa. Se não, o monstro pode reviver. Não digo que com a mesma forma, pois, afinal de contas, o clima golpista dos anos 60, CIA à frente, parece estar superado. Mas, o que dizer do terrorismo penal? Com ele, reputações têm sido enxovalhadas, num espetáculo de publicidade circense, desrespeitando-se descaradamente o princípio da presunção de inocência.

Vinicius de Moraes advertiria: “Aí, então, é preciso ter cuidado”.

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