A Assembleia Constituinte, em 1823, apresentou a Dom Pedro I o esboço do que deveria ser a primeira constituição do Brasil independente. O imperador não gostou: achou que o projeto lhe tirava poderes, submetendo-o ao legislativo, e, então, convocou o exército, cercou a Assembleia com canhões e a dissolveu pura e simplesmente. Conta-se que um dos deputados, ao sair do recinto, tirou o chapéu e, fazendo reverência a um dos canhões, teria dito: “Respeito muito Vossa Majestade”.

Qualquer semelhança com aquele desfile de tanques do início da semana não é mera coincidência. No primeiro episódio, tínhamos o inconformismo do príncipe com a limitação de seus poderes, nos moldes de uma monarquia constitucional. No episódio da esplanada dos ministérios, tivemos a arrogância do príncipe, diante da possibilidade de não serem satisfeitos os seus desejos.

Mas será que os tanques exibidos com tanta pompa terão o mesmo efeito que os canhões do imperador? Tenho cá minhas dúvidas. A correlação de forças é outra e o espaço para a aventura golpista do presidente é extremamente exíguo. Mesmo com um Congresso dominado pelo que há de mais retrógrado e reacionário no país, nada autoriza a conclusão de que haverá submissão às aspirações presidenciais.

É certo que Bolsonaro há muito tempo passou dos limites. Sem nenhum respeito pelo cargo que ocupa, mancha-o a todo momento quer pela postura arrogante, quer pela linguagem chula com que trata os problemas. Chamar de “filho da p…” um ministro da Corte Suprema é fato que se insere dentro da megalomania de Sua Excelência, revelando um total desrespeito por regras mínimas de convivência política.

Enquanto isso, o país segue à deriva. Na economia, logramos alcançar um número recorde de desempregados, sem que se vislumbre qualquer possibilidade de mudança, pelo menos a médio prazo. Na pandemia, somos um vergonhoso exemplo de irresponsabilidade: o presidente insiste em recomendar o uso de cloroquina, enquanto a vacinação caminha a passos de cágado, sendo certo que o número de mortos (mais de quinhentos mil) já ultrapassou os do genocídio de Hiroshima, ao final da segunda guerra mundial. Em outras palavras: a postura do governo brasileiro diante da pandemia é mais letal que uma bomba atômica.

Nada disso parece afetar a postura presidencial. Quem ouve Bolsonaro falar há de imaginar que o país navega em mar manso e ensolarado, com plano de navegação bem traçado, respeitadas todas as regras atinentes à espécie. Ninguém se dará conta de que, ao contrário, vivemos um dos piores momentos de nossa história republicana, na medida em que o governo central se recusa a aceitar a evidência de que é preciso dar uma guinada para acertar os rumos.

Apesar do Centrão, a Câmara dos Deputados sepultou o projeto que instituía o voto impresso, essa outra fixação do presidente, inteiramente desvinculada da realidade. Por que essa fixação? Só pode ser uma tentativa de preparar terreno para, uma vez derrotado nas urnas, alegar fraude e repetir aquela palhaçada que Donald Trump fez nos Estados Unidos.

Lá nem cá a presepada pode ter êxito. O que nos resta fazer é não abrir mão da defesa direta da forma democrática de governo. A cada arreganho fascista do presidente responder com o bom senso. A cada ameaça às instituições, manifestar apoio incondicional a elas, demonstrando que são imprescindíveis ao estado democrático de direito.

Há quem diga que Bolsonaro é doido. Escapa-me a possibilidade de confirmar ou negar a hipótese, na medida em que não tenho formação em psiquiatria. Nada me impede, entretanto, de, mesmo sendo leigo, estranhar determinadas posturas de Sua Excelência. De qualquer forma, se não for normal, que vá fazer suas anormalidades para os seus e deixe em paz o povo brasileiro.

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