“Prestar a tutela jurisdicional” é a expressão pernóstica que o “juridiquês” emprega para traduzir a atividade mais simples e elementar de um juiz: julgar.

É claro que o direito, como toda ciência, apresenta dificuldades que não são acessíveis aos leigos. Complicar essas dificuldades com uma linguagem empolada, entremeada de latinório incompreensível, é, infelizmente, apesar de desnecessário, uma tendência entre os chamados, enfaticamente, “operadores do direito”.

Há alguns anos, o jovem magistrado amazonense, dr. Ronie Frank Stone, me honrou com o convite para lhe prefaciar a obra intitulada “Constituição para todos”. Sem brilho, mas com orgulho, cumpri a missão e observei o quanto o direito se afasta de seu real destinatário, exatamente pela forma como são redigidas leis, sentenças, acórdãos, enfim tudo aquilo que diz respeito à aplicação prática da ciência jurídica.

O ser humano, formado ou não em direito, tem com este, remota ou proximamente, sempre uma ligação. Seria imprescindível, então, que, sem lhe exigir o domínio dos mistérios científicos, tivesse ele pelo menos a noção aproximada das normas que, queira ele ou não, estão a reger diuturnamente o seu comportamento.

Não é o que acontece na prática, na medida em que, para ficar em apenas um exemplo, ninguém pode adivinhar que “imputabilidade” significa “capacidade de compreensão”.

Em razão das suas próprias origens, nosso direito não se pode desvincular do velho direito romano, onde se encontram as raízes da maioria das instituições aqui adotadas. Isso, entretanto, não autoriza que petições e sentenças estejam repletas de expressões latinas, até porque a maioria delas encontra perfeitos similares em português.

Em alguns casos, poucos, não há como fugir do recurso à língua-mãe. “Habeas corpus” não pode e não deve ser traduzido. Não há, porém, nenhum motivo para chamar de “mutatio libeli” o que poderia ser, singelamente, “mudança da acusação”.

Colho, ao acaso, alguns verbetes insertos no dicionário de juridiquês.

Cártula chéquica é o apelido de uma inocente folha de cheque.

Digesto obreiro significa, por incrível que pareça, a Consolidação das Leis do Trabalho, a qual, apesar de chata como ela só, não merece tamanha ofensa.

O velho e cansado Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com greve ou sem greve, é conhecido entre os iniciados como, pasmem, Autarquia ancilar.

Ao mandar alguém para o xilindró, já vi um juiz que determinou fosse o infeliz recolhido ao ergástulo público. Nessa coisa, o cumprimento da pena de prisão há de ser mil vezes pior do que numa simples cadeia.

Há, em tudo isso, um equívoco básico. Trata-se da mania de achar que falar difícil, ou, o que é quase o mesmo, de maneira incompreensível, torna o orador ou o escriba mais importante, por lhe conferir aparência de maior sabedoria.

Ledo engano. A singeleza do texto de Machado de Assis não impede que ele seja um romancista mil vezes melhor que o chatíssimo José de Alencar.

Repito aos meus alunos que os que se voltam para a ciência jurídica dispõem de uma só matéria prima: a palavra. Por isso, o ideal é que saibam escrever e falar. Pelo menos uma das duas coisas é imprescindível. Mas, no assunto de que me ocupo, escrever e falar significam fazer-se compreender porque de nada adianta ao advogado, por exemplo, redigir uma petição erudita se a linguagem utilizada se torna hieroglífica para o julgador que a vai apreciar.

O pedantismo na linguagem jurídica é um mal que tem remédio. Basta tomar doses regulares de humildade e, então, será possível verificar que, se posso dizer “doutor, seus argumentos estão em desacordo com a Constituição”, não é necessário cometer “doutor, data venia, seu arrazoado fere a Lex Legum”. Além de boçal, é ridículo.

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