Enquanto maratonistas se alongavam e tomavam seus lugares na linha de partida, um homem se destacava: vestido de plástico dos pés à cabeça, com uma capa multicolorida de sacolas plásticas varrendo o chão de terra e, sobre sua cabeça, um chapéu feito de óculos de sol de plástico.

Naquele dia de novembro, Modou Fall não estava competindo na maratona anual da capital senegalesa. Sua corrida era outra: salvar esse país da África ocidental do flagelo do lixo plástico que entope rios e lagos, macula praias brancas e é varrido constantemente pelas ruas. Com a prova atraindo grandes multidões e presença considerável da mídia, Fall não podia perder a oportunidade de promover sua causa.

Agitando a bandeira senegalesa e carregando um alto-falante do qual saíam canções descrevendo o dano causado por plásticos —”amo meu país, digo não aos saquinhos plásticos”–, Fall serpenteou entre os corredores, com sua capa comprida, enquanto a corrida começava. Quem parava para pedir uma selfie caía em sua armadilha hábil e habitual: ele aproveita cada oportunidade para dar uma aula gentil sobre questões ambientais.

Quando o último grupo de corredores largaram, Fall e sua equipe de voluntários começaram a recolher as garrafas d’água vazias e saquinhos que os maratonistas haviam deixado para trás.

Para os turistas e competidores estrangeiros que foram a Dacar para a prova, aquele pode ter sido seu primeiro contato com Fall. Mas para os habitantes de Dacar ele é uma presença familiar. O “homem-plástico” é visto com frequência dançando nas ruas vestindo o traje criado por ele e que evolui constantemente, feito inteiramente de plástico, principalmente sacolas recolhidas na cidade. No peito, uma placa dizendo “não aos sacos plásticos”, em letras garrafais. É uma luta que ele leva muito a sério.

Seu figurino é inspirado no “Kankurang”, figura imponente e profundamente enraizada na cultura senegalesa que perambula em florestas sagradas e veste uma mortalha de gramíneas trançadas. A entidade é vista como alguém que protege as pessoas contra espíritos malignos e é responsável por ensinar valores comunitários. “Eu me comporto como o Kankurang”, diz Fall. “Sou educador, defensor e protetor do meio ambiente.”

Embora o lixo plástico seja um problema ambiental grave em todo o mundo, estudos recentes apontam que o Senegal, apesar de ser relativamente pequeno, é um dos maiores poluidores dos oceanos mundiais com o material. Isso ocorre em parte porque, como muitos países mais pobres, o Senegal tem dificuldade em tratar o lixo —além de ter uma população grande no litoral.

Em 2020, num esforço para reduzir a poluição, o governo senegalês proibiu o uso de alguns produtos de plástico, mas há dificuldades em implementar o veto. Se nada for feito, até 2025 o país, com 17 milhões de habitantes, deve produzir mais de 700 mil toneladas métricas de dejetos plásticos incorretamente tratados. Enquanto isso, nos Estados Unidos o número será de 337 mil toneladas métricas.

Modou Fall tem 48 anos e vem combatendo o lixo plástico pela maior parte da vida adulta. Ex-soldado, alto, carismático e modesto, ele notou os efeitos prejudiciais do material em 1998. Estava prestando serviço militar na zona rural do leste do Senegal, habitado por muitas comunidades de pastores, quando viu as vacas adoecendo após consumir fragmentos de sacos plásticos espalhados pela paisagem árida.

Concluído o serviço militar, Fall passou a vender camisetas e boias na movimentada feira livre de Sandaga, em Dacar, onde dezenas de feirantes expunham mercadorias de todos os tipos, frequentemente embaladas em plástico. Os saquinhos eram abundantes e baratos, e os feirantes os jogavam na rua despreocupadamente.

Ele passou meses tentando conscientizar os outros feirantes do perigo ambiental e convencê-los de que, se tivessem que usar sacos plásticos, que pelo menos se desfizessem deles corretamente. Mas ninguém lhe dava ouvidos; a feira era uma imundície.

Farto do que via, um dia ele decidiu tentar liderar pelo exemplo e se propôs a faxinar a feira inteira sozinho. “Levei 13 dias, mas fiz”, conta. Os saquinhos acabaram reaparecendo, mas Fall conseguira levar alguns feirantes a pensar duas vezes. Frear a onda crescente de lixo, então, virou sua obsessão. “Se continuar assim, a vida das gerações futuras estará em risco.”

Em 2006 Fall usou todas as suas economias, pouco mais de US$ 500, para fundar sua associação, a Senegal Propre (Senegal limpo). Ele plantou dezenas de árvores na cidade, organizou campanhas de limpeza e reciclagem de pneus, promoveu reuniões comunitárias para persuadir as pessoas a pararem de comprar objetos plásticos descartáveis.

Sua mensagem parece estar sendo ouvida. Na maratona, a terceira em que ele atuou, alguns corredores já conheciam suas palavras de ordem e gritaram quando passaram por ele: “Não ao lixo plástico!”.

Seguindo boa parte do trajeto da maratona, Fall e sua equipe de dez jovens voluntários se espalharam para dar conta da operação. Recolheram garrafinhas diante do Museu das Civilizações Negras, que expõe uma das maiores coleções de arte da África; centenas de sacolas plásticas no campus arborizado da Universidade Cheick Anta Diop; copos descartáveis no movimentado centro de Dacar, que abriga o palácio presidencial e várias embaixadas.

Um dos bairros pelos quais passaram foi Medina, construído pelos franceses nos tempos coloniais. É onde Fall nasceu. Com a morte do pai, quando ele tinha 4 anos, sua mãe levou a família para viver na periferia. Viúva, lutou para pagar as contas administrando um restaurante. Para ajudar a sustentar a família, ele foi obrigado a abandonar os estudos depois de apenas seis anos de ensino primário. Trabalhou como metalúrgico e pintor de paredes. Depois da morte de sua mãe, entrou para o exército.

No meio da tarde do dia da maratona, Fall e sua equipe estavam arcados sob o peso do plástico que haviam recolhido. Uma van chegou e eles entregaram centenas de garrafas de plástico. A equipe fez uma pausa breve para o almoço, mas ele não parou: ainda havia 8 quilômetros do trajeto da corrida, e ele seguiu adiante, com a capa de plástico esvoaçando a sua volta. (Folha de S.Paulo)

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