Na comunidade conhecida como “O Refúgio do Filósofo da Floresta”, onde o tempo parecia respirar em compasso com as folhas, algo sutil começou a se desfazer. Não foi de súbito, nem com alarde. Foi como o ranger de um galho velho prestes a se romper. Como um sussurro tênue que se perde na noite e quase ninguém escuta, exceto os que ainda sabem ouvir com a alma.

As crianças, com seus sentidos ainda despertos, perceberam antes. Maíra, durante uma de suas meditações à beira do igarapé, sentiu a água mais quente do que de costume. Os peixes, antes dançarinos incansáveis, agora nadavam com uma lentidão melancólica, como se estivessem cansados do próprio existir.

Arani, ao tocar a terra com suas mãos ritualísticas, sentiu que ela já não pulsava com a mesma vibração. Suas sementes hesitavam em germinar. As folhas, outrora verdes como jade ancestral, murchavam com facilidade, mesmo sob as chuvas persistentes.

Jaci, observadora dos ciclos lunares e dos ritmos do vento, notou um desalinho. A canção da copa das árvores soava fora de tom. Os sonhos dos anciãos tornaram-se sombrios e inquietos. Até os animais se desorientaram: os macacos gritavam em horários insólitos, e as aves migravam sem seguir a coreografia antiga da estação.

Havia um desequilíbrio. Invisível, mas visceral. Uma dissonância no canto da floresta. Em uma assembleia à luz da fogueira, sob um céu limpo e assustadoramente silencioso, os anciãos se pronunciaram. A velha Yara, com a voz embargada pelo tempo e pela intuição, declarou:

— “A floresta nos fala. Não com palavras, mas com sinais. E agora ela grita. A ameaça não vem com armas nem com máquinas, mas com esquecimento. O que antes fluía em harmonia agora sangra pela indiferença”.

Logo se soube: na região do rio Amazonas, um grupo de forasteiros havia iniciado a extração de madeira. Vieram sem pedir licença. Sem escutar os ventos. Sem compreender que cada árvore caída carrega séculos de memória. Vieram com máquinas, com pressa, com a cegueira do lucro. A floresta, até então viva e sagrada, começou a recuar.

Maíra, Arani e Jaci entenderam: aquilo não era apenas uma invasão de terras. Era um rompimento espiritual. Uma fratura no elo invisível entre o humano e o não humano. O pacto silencioso com os guardiões da natureza estava sendo violado.

Os ensinamentos do Filósofo da Floresta, que por tanto tempo haviam guiado a vida do povoado, tornaram-se escudo e caminho. Não seria uma guerra de força, mas de consciência. De firmeza enraizada no amor profundo pela Terra.

Na clareira sagrada, todos se reuniram. Entoaram o antigo mantra com vozes firmes e olhos marejados:

— “Sou raiz, sou vento, sou chama que não se apaga. Somos guerreiros. Vamos lutar. Vamos viver e vencer”.

Era o chamado à resistência antropológica e ancestral. Ao despertar dos que ainda escutam o sussurro da floresta em cada folha caída, eles vieram. Eram muitos. Estavam preparados. A consciência limpa, tranquila. Os sentidos à flor da pele.

Naquela noite, antes da batalha final, Jaci ergueu os olhos para o céu estrelado, para motivar os presentes, e disse:

— “Se esquecermos de quem somos a floresta também nos esquecerá”.

E assim o povoado se preparou. Com armas, mas também com união. Não com medo, mas com memória. Pois como dizia o Filósofo:

— “A natureza é espelho. O que ferimos nela, primeiro apodrece em nós”.

E todos ficaram vigilantes…

Luís Lemos é professor, filósofo, escritor, autor, entre outras obras de, “O primeiro olhar” (2011), “O homem religioso” (2016), “Jesus e Ajuricaba na terra das amazonas” (2019), “Filhos da quarentena” (2021) e “Amores que transformam” (2024).

Instagram: @luislemosescrito

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