
Muito além do místico e do maluco, Raul Seixas era, antes de tudo, baiano. E não só de nascença: era baiano até o último fio de cabelo desgrenhado. Apesar da influência norte-americana que o fez falar inglês fluentemente aos nove anos de idade, foi a Bahia que moldou seu sotaque, sua irreverência e seu modo único de ver o mundo. Como a tropicália de Caetano e Gil, Raul também teve seu “régua e compasso” fincados na Cidade Baixa de Salvador.
“Seu inglês era fluente e natural, soava perfeitamente americano. Quando voltava ao português, parecia fazer questão de exagerar nas marcas de baianidade”, escreveu Caetano Veloso no livro Verdade Tropical. Uma frase que alguns fãs mais conservadores de Raulzito podem torcer o nariz por vir justamente de Caetano, antigo “rival” na Salvador que dividia a cidade entre o rock e a bossa nova. Mas convenhamos: não há explicação mais precisa para quem foi Raul — a mosca na sopa dos costumes, da música e da própria Bahia.
As raízes da metamorfose
Nascido em 28 de junho de 1945, Raul viveu uma infância típica da classe média soteropolitana. Morava na Rua Rio Itapicuru, número 17, na Boa Viagem, onde hoje funciona uma loja maçônica. Ali, cresceu ao lado do irmão Plínio, quase quatro anos mais novo. Frequentava o Monte Serrat, a casa da avó na Avenida Sete e a oficina do tio Lulu Geladeira — sim, o mesmo que era piloto de corrida na Avenida Centenário. Foi dentro de uma das geladeiras que Raul se escondeu numa brincadeira e quase morreu trancado pelo irmão. O Brasil quase perdeu seu Maluco Beleza antes mesmo de descobri-lo.
Depois de temporadas no Canela e na Graça — onde há até hoje uma placa que o homenageia —, Raul passou a ver a casa de veraneio em Dias D’Ávila como um santuário pessoal. Estudou nos colégios São Bento e Marista, onde foi reprovado algumas vezes. “Eu era um fracasso na escola”, disse certa vez, embora tivesse o hábito voraz de devorar os livros da biblioteca do pai, um engenheiro que cultivava obras de filosofia e clássicos como Dom Quixote.
Mesmo antes de conhecer o rock americano, Raul já era apaixonado por Luiz Gonzaga. Para ele, Gonzagão e Elvis tinham o mesmo “veneno”. E foi justamente graças à vizinhança americana, próxima ao consulado, que Raul descobriu Elvis Presley, fundou o primeiro fã-clube do cantor no Brasil e aprendeu inglês de ouvido. A paixão era tamanha que ele chegou a agredir um colega por criticar o Rei do Rock. No leito de morte, havia com ele uma imagem de Elvis — ídolo até o fim.
Do Cine Roma ao direito: o caminho até o palco
Antes de ser o pai do rock brasileiro, Raul foi um menino com banda de garagem — literalmente. Ainda criança, fundou os Relâmpagos do Rock e, com eles, tocou pela primeira vez no Cine Roma, graças a Irmã Dulce, que autorizou a apresentação dos pequenos roqueiros. Raul fazia performances teatrais, se jogava no chão como Little Richard, assustava mães e conquistava fãs. Era um showman nato, mesmo quando ninguém sabia o que era rock em Salvador.
Seu estilo rebelde, com gola alta e jeito à la James Dean, destoava da intelectualidade da bossa nova que dominava os salões do Teatro Vila Velha. De um lado, Caetano, Gil e Gal. Do outro, Raulzito e seus Panteras, cantando para operários, empregadas domésticas e jovens da periferia no Cine Roma. Era a guerra fria da música baiana — o rock dos marginalizados contra a bossa dos bem-nascidos.
Foi nesse cenário que Raul conheceu Edith Wisner, americana por quem se apaixonou. Para convencer o sogro protestante a aceitar o namoro, cursou Direito na UFBA. Quando o pai dela cedeu, Raul largou tudo e seguiu sua trilha, que o levaria ao Rio de Janeiro ao lado de Jerry Adriani. O rock o chamava, e ele atendeu.
O fim e o eterno retorno à Bahia
Raul lançou em 1976 o disco Há Dez Mil Anos Atrás, que trazia na primeira faixa uma profecia: “A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar”. Morreu em 1989, aos 44 anos, em circunstâncias cercadas por excesso, mas também por poesia. A mãe, Dona Eugênia, sempre dizia: “Foi bom para Raul morrer cedo. Ele não gostava de ser velho. Imitou Elvis até nisso”.
Velado em São Paulo em meio a multidões e protestos, Raul teve seu caixão levado por fãs em carro de bombeiros, à revelia de qualquer cerimônia tradicional. Seu corpo foi enterrado em Salvador, no Jardim da Saudade, sob aplausos, choros, gritos de “Toca Raul!” e até convites dos fãs para que ele saísse para “tomar uma”. A partir dali, surgiu o grito que nunca mais se calou.
E o meio, onde tudo pulsa
Se o início foi moldado pela infância na Cidade Baixa e o fim selado pela mitologia da morte precoce, foi o meio que fez de Raul uma lenda. Do Cine Roma ao Teatro Vila Velha, das brigas com o sistema ao amor pela Bahia, Raul nunca deixou de ser uma metamorfose ambulante.
Salvador nunca saiu dele — nem ele de Salvador. “Essa identidade territorial é definidora da genética criativa de Raul”, afirma Edvard Passos, criador do musical Aventuras do Maluco Beleza. Como a própria frase que Raul rabiscou ainda menino no quarto da Graça: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
Raul saiu da Bahia. Mas sua alma, irreverência, rebeldia e sotaque continuam ecoando por cada canto onde um fã grita: Toca Raul!
Com informações de Correio 24 horas