
A validade do acordo de colaboração premiada firmado por Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, voltou a ser colocada em xeque após a revelação de supostas tentativas de fuga do país e do uso de redes sociais para discutir os termos da delação, o que viola as regras do acordo. Cid nega as acusações, mas os episódios reacenderam o debate sobre a sustentação jurídica da delação que embasa parte da denúncia contra o ex-presidente e aliados por tentativa de golpe de Estado.
Reportagem da revista Veja indicou que Cid teria usado contas no Instagram ligadas à sua esposa para falar com terceiros sobre sua colaboração com a Justiça. A defesa afirma que as contas não pertencem à mulher de Cid e que as mensagens são falsas, pedindo a abertura de investigação.
Diante da denúncia, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que a Meta, empresa responsável pelo Instagram, forneça dados de acesso, mensagens trocadas e responsáveis pelas contas mencionadas. Além disso, ordenou que Cid prestasse novo depoimento à Polícia Federal na sexta-feira (13/6) para esclarecer uma possível tentativa de obtenção de passaporte português.
Investigado por tentar obter passaporte com ajuda de ex-ministro
Segundo a Polícia Federal, Gilson Machado, ex-ministro do Turismo de Bolsonaro, foi preso sob suspeita de ter atuado para viabilizar a liberação de um passaporte português para Cid no consulado de Portugal, em Recife. Ambos negam qualquer irregularidade.
Cid, que tem cidadania portuguesa, disse em depoimento que não pretendia sair do país e que a viagem recente de seus familiares aos Estados Unidos já estava programada. Sua defesa afirma que a saída dos pais, esposa e filha não tem relação com qualquer plano de fuga e que ele está “tranquilo” e cumprindo os termos do acordo de colaboração.
Juristas divergem sobre impacto no processo
Apesar das suspeitas, especialistas em Direito Penal afirmam que uma eventual anulação do acordo de delação de Cid não encerraria automaticamente o processo contra Bolsonaro e os demais acusados. Segundo o professor da USP Maurício Dieter, a delação premiada permanece em um “limbo jurídico”, com falta de clareza legal sobre os efeitos da rescisão parcial ou total de um acordo.
“O delator tem dever de lealdade com o Ministério Público. Uma tentativa de fuga ou ocultação de fatos pode invalidar a colaboração. Se confirmado, o pedido de prisão preventiva seria justificável”, avalia Dieter.
Já o criminalista Leonardo Yarochewsky ressalta que o processo por tentativa de golpe não depende exclusivamente da delação de Cid. “Outras provas já foram produzidas e testemunhos de militares de alta patente confirmaram parte do que foi relatado por ele”, disse.
De fato, depoimentos de Freire Gomes (ex-comandante do Exército) e Carlos de Almeida Baptista Júnior (ex-comandante da Aeronáutica) sustentam que Bolsonaro discutiu a decretação de Estado de Sítio ou de Defesa no fim de 2022. Ambos rejeitaram a proposta na época.
Reincidência e risco de quebra do acordo
Desde que fechou o acordo com a PF em setembro de 2023, após ser preso na investigação sobre a falsificação de cartões de vacinação, Mauro Cid se tornou peça-chave no inquérito sobre a tentativa de ruptura democrática. No entanto, sua colaboração já passou por momentos de instabilidade.
Em março de 2024, ele foi preso novamente por obstrução de Justiça, após o vazamento de áudios em que dizia estar sendo pressionado pela PF. Ele se retratou e continuou em liberdade. Em novembro, um novo episódio de risco surgiu quando a PF apontou omissões relevantes em sua delação, como o não relato de um plano de atentado contra Lula, Alckmin e Moraes, supostamente conhecido como “Punhal Verde e Amarelo”.
Na ocasião, Moraes determinou novo depoimento de Cid e advertiu que aquela seria sua “última chance” de contar a verdade. O ex-presidente Jair Bolsonaro e demais réus negam a existência do plano e afirmam que o militar mentiu para evitar nova prisão.
O que dizem os envolvidos
A defesa de Cid, representada pelo advogado Cezar Bitencourt, afirma que não há qualquer risco de ruptura no acordo. “Mauro está bem e tranquilo. Ele sabe que não pode sair do país e não tem intenção de fazê-lo”, declarou.
Por sua vez, o ex-ministro Gilson Machado negou qualquer tentativa de favorecer Cid. Segundo ele, apenas solicitou um passaporte para seu pai de 85 anos no consulado português. “Não estive em consulado algum, nem no Brasil nem no exterior. Nunca matei, nunca trafiquei drogas. Estou sendo acusado por algo que não fiz”, afirmou a jornalistas em Recife, ao ser conduzido para exame de corpo de delito.
Processo segue com outras provas
Na avaliação do professor e criminalista Aury Lopes Júnior, uma eventual anulação do acordo de delação teria impacto limitado. “As provas técnicas colhidas permanecem válidas, salvo se forem consideradas ilícitas. Se a delação for rescindida, quem se prejudica é o próprio Cid, que perderá os benefícios”, afirmou.
O processo no STF acusa oito réus, entre eles Bolsonaro, Cid e três generais do Exército, por integrarem um núcleo central que teria articulado uma tentativa de golpe para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. A acusação é sustentada pela delação de Cid, provas documentais e depoimentos de militares e ex-ministros.
Com informações de BBC News