
Autoridades dos 31 países-membros da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) desembarcarão sob pressão nesta terça-feira em Vilna, na Lituânia, para a aguardada cúpula anual da aliança encabeçada pelos Estados Unidos. Frente à guerra na Ucrânia, precisarão navegar pelas diferenças entre si para rever a estratégia coletiva de defesa e debater pelos próximos dois dias a falta de munições e equipamentos enfrentada por Kiev — e a nada unânime decisão americana de ceder as arriscadas bombas de fragmentação para o país invadido pela Rússia há 500 dias.
Anunciada no fim da semana passada como parte de um novo pacote de US$ 800 milhões em armamentos para os ucranianos, os explosivos fragmentários não são uma unanimidade entre os aliados, sendo inclusive vetados em mais de 120 países. Os artefatos se abrem quando são disparados, dispersando centenas de granadas menores que explodem ao entrar em contato com seu alvo.
Quando não detonam no impacto, entretanto, tornam-se minas que representam um risco para os civis mesmo depois de terminados os conflitos — localizá-las e retirá-las quando a guerra terminar deverá ser um desafio por si só. Não à toa, a Convenção das Nações Unidas sobre Bombas de Fragmentação de 2008, que veta todo o uso, produção, transferência e armazenamento de tais armas, tem a participação de 123 nações.
Entre os que aderiram estão atores de peso da Otan e aliados próximos dos americanos. Antes do anúncio, a agência de notícias Reuters noticiou que a chanceler alemã, Annalena Baerbock, havia se recusado a seguir os passos americanos diante dos riscos. O chanceler britânico, Rishi Sunak, deu declarações no mesmo sentido.
Um dos rechaços mais claros ao anúncio americano veio de Madri, que afirmou por meio de sua ministra da Defesa, Margarita Robles, que o apoio do país à Ucrânia é “total”, mas que sei mais “não compartilha da decisão” de enviar as bombas. Também signatário do pacto, o governo canadense afirmou que “não respalda o uso do armamento” e que “leva a sério a obrigação de incentivar sua adoção universal” frente aos riscos para civis.
Segundo o Pentágono, as remessas que irão para a Ucrânia têm um índice de falha de 2,35% ou menos, bem menor que o habitual para a categoria. As bombas contêm granadas mais velhas que, sabe-se, têm uma taxa de erro de 14% ou mais, o que acende o sinal vermelho.
Os americanos, na prática, têm uma lei que veta a transferência dos explosivos fragmentários com taxa de erro superior a 1% — menor, portanto, que o calculado pelo Departamento de Defesa —, mas o presidente Joe Biden pode driblá-la. A extensão do desconforto que o assunto causará ainda não está clara, com países como Itália e França reforçando seu compromisso com o pacto, mas demonstrando alguma compreensão com o posicionamento de Washington.
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, descartou que a aliança atlântica como um todo vá ponderar sobre o assunto. Mesmo tentando se distanciar de uma decisão coletiva, contudo, fez uma mea culpa afirmando que já há mortes diárias causadas por tais bombas. A diferença disse, é que os russos as usam em sua “guerra de agressão para invadir outro país, enquanto os ucranianos o fazem para se defender”.
— Vários aliados assinaram a convenção sobre o assunto, mas vários outros não o fizeram. Cabe aos aliados decidir sobre o envio de armas e equipamentos militares para a Ucrânia — afirmou ele, distanciando-se do assunto. — Isso ficará para os governos decidirem, não a Otan.
Crime de guerra?
Em meses anteriores da guerra, quando uma investigação da ONU constatou que a Rússia usava as controversas armas no campo de batalha, a então porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, disse que se isso fosse verdade, seria um “crime de guerra”. Não seria, contudo, a primeira vez que os americanos recorreriam a elas, que deixaram um rastro de destruição na Guerra do Golfo e na posterior invasão do Iraque.
A Casa Branca desta vez recorre a uma linha argumentativa similar a de Stoltenberg, afirmando que o envio foi acordado após meses de negociação pois não há mais saída para aliviar a escassez de munições e equipamentos crônica que afeta Kiev. A força-tarefa comandada por Washington, contudo, não consegue enviar ou produzir munição no ritmo necessário para ajudar o país do presidente Volodymyr Zelensky.
Houve anúncios e medidas concretas para aumentar a capacidade de produção, com a Comissão Europeia, por exemplo, apresentando há dois meses um plano de 500 milhões de euros para acelerar o ritmo de suas indústrias. Trata-se, contudo, de um processo demorado para o tempo da linha de frente.
Mas os pedidos de Kiev por mais agilidade e armas mais poderosas são cotidianos, frente à enorme dependência que a nação do Leste Europeu tem das armas de seus aliados, após seu próprio arsenal praticamente se esgotar ainda nos meses iniciais da guerra. E ao grande gasto diário: em junho, estimava-se que os ucranianos estivessem usando por dia de 5 mil a 6 mil munições por dia.
Os russos, acreditava-se, chegam a disparar cerca de 50 mil vezes a cada dia, vantagem que é ainda maior quando se leva em conta que Moscou tem uma superioridade numérica de soldados. E três semanas após o breve motim do grupo Wagner, os esforços do Kremlin para manter o território ocupado parecem não terem sido drasticamente impactados. Há uma semana, Kiev dizia que a contraofensiva iniciada em 4 de junho tinha retomado apenas 158 km².
Perdas maciças
A destruição das armas também parece ser grande, após Moscou passar as últimas semanas exibindo tanques alemães e americanos como troféus de guerra. O Kremlin diz ter destruído de 25% a 30% das armas ocidentais enviadas à Ucrânia, número que não pôde ser verificado e que quase certamente é exagerado, mas ainda assim as baixas são grandes.
Preparando-se para a contraofensiva atual — o próprio Zelensky disse que a operação começou com atraso devido à demora no envio dos armamentos —, os russos construíram uma linha de defesa de 800 km. Seus campos minados, trincheiras e uma estratégia arriscada que não leva em conta as grandes baixas humanas impõem grandes custos, e os ucranianos afirmam que sequer implementaram por completo seus planos para repelir os russos.
— A batalha sem dúvidas ficará mais dura. Para os parceiros internacionais da Ucrânia, o verão [boreal] corre o risco de ser muito incômodo — disse à Agência France Press Jack Watling, do centro de pesquisa britânico Royal United Services Institute. — As perdas aumentarão e os êxitos demorarão mais tempo a se materializarem.
Até agora, o site especializado Oryx estima que o país já tenha perdido quatro tanques Leopard recém-enviados pela Alemanha, dois blindados de reconhecimento doados pela frança e mais de 70 outros blindados de combate ocidentais. Os países europeus, contudo, já deixam claro que suas contribuições têm limites, com o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, alertando na semana passada que “não podemos substituir cada tanque que vai parar de funcionar”.
Como lidar com tal questão deve ser um assunto-chave da cúpula, e mais anúncios de ajuda são esperados para que o fluxo de armas continue a fluir. Em uma entrevista à imprensa francesa na semana passada, Stoltenberg disse que “o mais provável é que durante a cúpula nós nos comprometamos com um programa de apoio à Ucrânia de vários anos”, sinalizando que o grupo não pretende soltar a mão de Kiev.
Também deve haver a instalação de um Conselho Otan-Ucrânia, que deve permitir aos ucranianos se sentar à mesa em várias reuniões do grupo aliado. Ainda assim, há resistência em atender ao pleito ucraniano para um mapa que determine os caminhos da adesão ucraniana ao grupo.
O assunto é um dos mais urgentes na reunião, que deve ficar marcada também pela continuidade do bloqueio turco à adesão da Suécia ao bloco, algo que Estocolmo e Stoltenberg tinham expectativas de superar antes da ida para Vilna. Uma conclusão para o processo de anos já parecia difícil, mas ganhou novos complicantes nesta segunda aós o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, vincular o ingresso sueco na Otan à entrada de Ancara na UE, algo travado há anos e sem perspectivas reais de evoluir a curto prazo.
No caso da entrada ucraniana na Otan, Berlim e Washington tentam redigir um texto que deixe claro que a adesão não será imediata assim que a guerra terminar. Biden disse publicamente no fim de semana que Kiev “não está pronta ainda”, ressaltando que as qualificações necessárias vão “da democratização a um leque de outros assuntos” e que isso poderia significar uma escalada significativa do conflito com a Rússia.
— Se a guerra continuar [e a Ucrânia estiver na Otan], então todos nós estaríamos em guerra — disse Biden, referindo-se ao artigo 5º do tratado, o pilar da organização, que estabelece o princípio de defesa mútua.
O Reino Unido está no meio-termo, defendendo uma formulação que deixe evidente que o lugar ucraniano é dentro da aliança militar criada no fim da Segunda Guerra para conter o avanço da influência soviética em direção ao Ocidente. Quer ainda não deixar dúvidas de que a adesão cabe apenas aos 31 países parceiros, em um sinal claro para a Rússia.
A expansão da Otan para o Leste, nas fronteiras russas, é motivo de críticas constantes do presidente Vladimir Putin e foi citada como motivo para justificar sua invasão. Para justificar sua ofensiva, Putin afirma que com a queda do Muro de Berlim, a aliança havia se comprometido a não se expandir para o Leste Europeu — algo que não foi posto no papel e cuja veracidade é motivo de questionamentos.
A posição mais radical vem dos países do Leste, incluindo ex-repúblicas soviéticas e antigos países da Cortina de Ferro, que temem ser os próximos na mira de Putin. Defendem a suspensão das regras para a adesão, frente à situação extraordinária. Ainda não havia acordo nesta segunda-feira.
Revisão estratégica
Para a aliança como um todo, contudo, a reunião marca algo sem precedentes desde o fim da Guerra Fria: após passar este início de século focando seus esforços em territórios para além de sua fronteira, agora os riscos voltam para as fronteiras. O flanco oriental, e o temor dos países da região de serem os próximos nos planos de Putin, força o grupo a repensar sua estratégia de defesa.
Na reunião em Madri no ano passado, o grupo retornou à estratégia de “dissuasão por negação” que adotava durante a Guerra Fria. Ou seja, deter qualquer ataque russo na fronteira, sem disposição para ceder território, o que demanda um reforço drástico dos recursos bélicos, humanos e de capital na região.
Há uma mudança estratégica já em curso, e desde que o confronto começou, milhares de soldados adicionais foram mandados à região. Há também quatro “grupos de combate” multinacionais na Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária, além dos já na fronteira da Polônia e dos Estados bálticos com a Rússia, a postos desde a invasão da Península da Crimeia em 2014. Agora, a Otan avalia expandir as operações em tais regiões para brigadas, com milhares de soldados a mais.
O Reino Unido, por exemplo, terá soldados de prontidão para reforçar o efetivo já presente na Estônia. A Lituânia, contudo, quer uma modelo mais permanente e garantido, e discute com a Alemanha como prosseguir. De forma geral, o plano é que haja cerca de 300 mil soldados prontos para serem despachados dentro de 30 dias, se necessário, sete vezes mais que o atual.
Tudo isso, entretanto, custa dinheiro, e o financiamento da aliança é um imbróglio antigo. Os países aumentar o gasto com a defesa coletiva para “ao menos 2%” do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2014, haviam se comprometido em a chegar a tal percentual em uma década, mas só 11 nações o fizeram: EUA, Reino Unido, Polônia, Grécia, Estônia, Lituânia, Finlândia, Romênia, Hungria, Letônia e Eslováquia.
Se antes era visto como o objetivo máximo, o desejo é que o percentual seja a contribuição mínima. Cabe ver, contudo, se há vontade suficiente para demonstrar tal comprometimento com a defesa coletiva. E driblar o fato de não haver uma forma concreta de obrigá-los a desem.
Com informações de: O Globo







