Fred Magno / O Tempo

Nunca duvide da dor de uma mulher (ou menina) vítima de abuso sexual. Ouça. Acolha. Abrace. Ajude. E, desde que exista consentimento, faça reverberar o sofrimento de uma pessoa violentada – mesmo que ninguém seja capaz de mensurar o tamanho dele.

Trazer à tona uma história guardada por décadas pode ser, sim, um passo para a cura de feridas abertas. Pode ser também um grito de socorro contra crimes que precisam ter fim. E, se você considera “o fim desses atos brutais” um sonho distante numa sociedade tão violenta, que denúncias – como a que será contada agora – ajudem, pelo menos, a abrir caminhos para punição de criminosos e conscientização de todos nós em relação à luta contra crimes sexuais.

Uma mensagem chegou ao meu celular, pelo WhatsApp, às 7h. Ainda nem estava acordada naquela terça-feira. Só fui ler uma hora depois. Vinha de uma mulher. Tínhamos trabalhado juntas havia alguns anos. Profissional séria. Sempre reservada e responsável.

Perguntou se eu poderia recebê-la. Como todo bom jornalista, pensei que seria uma sugestão de pauta e, logo, me prontifiquei a encontrá-la. Jamais imaginaria o teor da conversa. Horas mais tarde, estávamos frente a frente numa sala de reuniões. Trocamos amenidades quando ela me olhou nos olhos e revelou: “Sou uma das vítimas do padre Bernardino. Fui abusada por ele”.

Assim vinha a público, por desejo da vítima, uma história guardada há 37 anos. Para quem não sabe, Bernardino Batista dos Santos tem hoje 77 anos. É ex-padre. Foi detido em casa no último dia 23, em Juatuba, na região metropolitana de BH. A prisão é referente a um inquérito aberto em 2021. Uma denúncia de abuso contra uma criança ocorrido em 2016, no município de Tiros.

Judicialmente, esse é o único caso que não prescreveu. Mas há inúmeras outras denúncias, todas de abuso sexual da época em que ele era o padre da Paróquia Nossa Senhora Medianeira e Santa Luzia, no bairro Paraíso, na região Leste de BH.

A mulher, cuja história é descrita nesta reportagem, tem 48 anos. Seu relato começa em 1984. Quando ela tinha 8 anos, a família se mudou para a rua Cachoeira Dourada, a um quarteirão da igreja de Santa Luzia. Desde então, passou frequentar a paróquia. A ideia da família era manter a educação católica. Não demorou para que se aproximassem do padre. Ele e o pai da então garota nasceram em cidades vizinhas.

Para além dos encontros da igreja, o pároco começou a frequentar a casa da família. A criança foi colocada na catequese, na qual se tornou bastante ativa. A relação – que parecia segura – desmoronou em 1987. Foi depois de uma das habituais confissões. A menina, então com 11 anos, foi levada para a sacristia. Era, na teoria, apenas para pegar uma encomenda e entregá-la aos pais.

Uma garotinha sem qualquer noção de sexualidade. Segundo ela conta neste depoimento, Bernardino a pegou por baixo dos ombros, a sentou em cima da mesa e começou a jogar sobre ela o peso do seu corpo. Arrancou a calcinha e começou a esfregar o órgão sexual, de forma bruta, na vagina. “Me lembro do cheiro daquele dia”, conta.

É que as lembranças, de acordo com a entrevistada, cujo nome preferi preservar, fazem reviver as dores do dia fatídico que mudou a vida dela. “Ele me machucou. Eu disse a ele que estava me machucando… Mas mandava eu me calar. Tentei ir embora. Ele não deixou. Me segurou com ainda mais força até que ejaculasse. Ele se limpou com uma toalha já deixada ao lado, sobre a mesa. Só hoje entendo que estava tudo preparado, premeditado”, afirma.

Os fatos seguintes foram vindo à tona durante aquela inesperada entrevista, e a mulher seguiu contando sobre como chegou em casa: desesperada, com muita dor e sangramento vaginal. “Por dias, as tais dores seguiram. E o pesadelo estava apenas começando. Toda vez que eu me confessava, ele fazia de novo. Na minha cabeça, ficou marcado que essa era a minha penitência. Comecei a achar que meus pecados eram muito graves, sendo que o maior pecado eram as brigas com a minha mãe. Ele insistia no mandamento ‘honrar pai e mãe’, ampliava a culpa”, lembra. 

Ainda conforme os relatos, Bernardino levava as coroinhas para viagens. Ia às casas das garotas para pegar autorização dos pais. Em um dos “passeios”, para Vila Velha, o abuso voltou a ocorrer.

“Eu dormia na cama de baixo de um beliche. Ele se debruçou em cima de mim e repetiu o que fazia na sacristia. Como mais uma vez ele me machucou, associei como castigo pelos meus pecados. Era assim que eu entendia. Via no padre um representante de Deus, logo estava sendo castigada”, desabafa.

Descoberta da família

De volta a Minas, em outro dia de abuso sexual, o padre Bernardino teria tentado pela primeira vez beijar a menina na boca. “Fiquei confusa, saí da sacristia correndo, chorando e com dor. Quando virei a esquina, dei de cara com o meu pai, que perguntou o que houve”, lembra.

Segundo a vítima, o abusador havia demorado mais que das outras vezes, e o atraso fez com que o pai dela fosse buscá-la na igreja. “Eu disse que ele tentou me agarrar. Meus pais nunca mais me deixaram ir à igreja. Anos depois, minha mãe me contou que foi atrás dele. Mas ele mentiu, disse que não havia acontecido nada. E fui eu quem me senti culpada, como se eu tivesse errada em revelar toda aquela dor”, explicou.

Em 1994, quando a vítima completou 18 anos, a mãe dela se atentou para a evolução de um quadro depressivo e a levou para a terapia. “Depois de quase quatro anos desse trabalho com a psicóloga, eu entendi que tinha sido violentada e precisava contar isso aos meus pais. Não consegui relatar ao meu pai o que era exatamente aquele ‘agarrar’, mas falei pra minha mãe. Contei que era bem pior do que eles imaginavam”, explica.

A mãe não precisou de mais detalhes e tentou denunciar o padre naquela ocasião, mesmo tendo passado mais de dez anos do ocorrido. “Ela foi coibida pelas beatas que cercavam o padre. Disseram que ele era um homem santo. Na mesma época, ele foi denunciado por uma adolescente de 16 anos. As pessoas disseram que ela foi quem deu em cima, que a culpa era dela. A jovem precisou se mudar para outra cidade”, relembra.

Depois desse episódio, a família, então, não tocou mais no assunto. “Resolvi inconscientemente que precisava esquecer para superar”, conta a mulher.

Consequências

Ela diz que, em dezembro de 2021, veio do irmão a informação de que Bernardino havia sido novamente denunciado e que haveria processo. Mas, abalada pela recente morte do pai, a mulher não teve forças para buscar justiça. Só no fim do ano passado, 36 anos depois da sequência de atos tão violentos, que a vítima – cuja história contamos aqui – conseguiu se expressar claramente. 

“Fiz uma imersão terapêutica quando decidi enfrentar, olhar para o que aconteceu sem maquiagem. Em janeiro deste ano, fiz o boletim de ocorrência. Os policiais me informaram da prescrição, mas eu quis seguir. Oficializar formalmente era um divisor de águas mesmo tantos anos depois”, revela.

E, assim como ela, fizeram tantas outras mulheres que acabaram se encontrando em dores semelhantes. Pelo menos 50 fizeram denúncias à polícia de abusos – que teriam sido cometidos por Bernardino –, mas a maioria já prescrita, conforme a lei.

E, apesar de ser vítima, a mulher ainda tenta se livrar das culpas que sofreu a vida inteira. Culpa por não ter entendido com clareza os abusos. Culpa por não ter contado de imediato aos pais. Culpa por fazê-los sofrer tardiamente. Culpa por não ter tido relacionamentos longos. Culpa por ter dificuldade em manter relações sexuais ainda hoje. Culpa por ter se casado apenas aos 42 anos, quando – no caso dela – a gravidez já não era indicada.

E até mesmo a culpa por ter perdido a fé, que tenta recuperar. “Tenho buscado me reconciliar com Deus. Hoje tenho consciência de que quem me violentou foi um ser humano. Ainda assim, sinto dificuldade em desvincular a figura do representante de Deus de quem me fez tanto mal”, lamenta. Com informações de O Tempo.

 
Artigo anteriorProcon-AM orienta consumidores para compras seguras na Black Friday
Próximo artigoBiblioteca Braille do Amazonas comemora 25 anos de existência nesta sexta-feira