Igor Estrela

Agora, passados quase dois anos desde a eclosão da crise, pode-se dizer que o conjunto de fraudes e “desvios de conduta” praticados contra a Americanas pela antiga cúpula da empresa está mapeado. E ele é maior do que se imaginava. Além das falcatruas conhecidas, que abriram um buraco de cerca de R$ 25,2 bilhões na contabilidade da companhia, as novas descobertas incluem a manipulação de dados sobre estoques, vendas e frentes – tudo, como sempre, para garantir um “falso positivo” nos balanços da empresa.

Em relação aos “desvios de conduta”, o novo mapeamento destaca a concessão de benefícios para a cúpula da varejista, mas criados por ela mesma (ou seja, um tipo de autoconcessão de vantagens). Isso abrangia, por exemplo, o uso de veículos blindados de luxo por parte dos diretores mais graduados, mas sem o consentimento prévio do conselho de administração – o que seria imprescindível nesse caso, dadas as regras de governança da companhia.

A Americanas tinha um mecanismo por meio do qual os executivos recebiam um empréstimo para a aquisição de um carro. Esse tipo de medida fazia parte de uma estratégia para reter funcionários qualificados, oferecendo-lhes alguns mimos, como uma forma de complemento salarial.

Até aqui, tudo bem. Essa é uma prática comum em grandes companhias. E o financiamento dos automóveis era parcial e pago em parcelas mensais. No fim do processo, o funcionário poderia optar pela quitação da dívida ou pela troca do veículo por um novo.

Vantagens turbinadas

Menos comum, contudo, foi o benefício autoconcedido pela (e para) a alta cúpula da companhia, que chegou a ter 22 diretores no topo da cadeia de executivos. E as vantagens dessa turma eram mais atrativas do que as oferecidas para os escalões inferiores. Tratava-se de carros blindados de luxo comprados pela empresa. Depois, eles poderiam ser adquiridos pelos diretores com descontos de até 80%.

Por isso, era comum que toda a área de um trecho considerável do estacionamento na sede da Americanas, na Rua Coelho e Castro, perto da Praça Mauá, no centro do Rio, ficasse tomada pelos veículos blindados, num total de cerca de 20 carros, a maioria da marca Volvo, além de um ou outro Tiguan ou Land Rover. Nos horários comerciais, a frota ficava acomodada ao lado de um imenso painel, com 30 metros de altura e 70 de largura, grafitado pelo artista plástico Tomaz Viana, o Toz, que se tornou uma referência visual na região portuária carioca.

Despesas com blindagem

E havia um fato curioso relacionado aos carrões. Eles simplesmente desapareciam do estacionamento nos dias em que os conselheiros compareciam a Americanas. Assim, quando a área perto do painel multicolorido de Toz ficava vazia, sem os veículos da cúpula, o pessoal “chão de fábrica” da varejista já sabia: “Hoje é dia de reunião do conselho de administração”, diziam.

Somente em 2018, a empresa pagou R$ 2,3 milhões para blindar esses automóveis. Em abril de 2021, com a união da B2w (o braço digital da companhia) e da Americanas (o segmento de lojas físicas), o número de altos dirigentes da empresa diminuiu. Ele passou de 22 para quatro. Ainda assim, havia sete carros de luxo à disposição desse grupo. Alguns deles, portanto, na reserva.

Fretes

Quanto às fraudes propriamente ditas, todas tinham um objetivo básico. Elas eram usadas para criar um resultado positivo para a Americanas, à revelia da realidade. Seguindo tal princípio, qualquer despesa ou tropeço comercial tinha de ser varrido para baixo do tapete das demonstrações financeiras.

Por meio de informações obtidas pelo Metrópoles a partir de desdobramentos das investigações da Polícia Federal (PF) e do comitê criado para analisar a fraude, o chamado comitê independente, sabe-se agora que os gastos com fretes entraram nessa ciranda. Na prática, parte dessas despesas eram transformadas em investimentos na contabilidade. Assim, no jargão corporativo, o que era “opex” (indicador dos gastos regulares de uma empresa para manter operações diárias) virava “capex” (o indicador de investimentos).

Em um período de um ano, foram encontrados cerca de R$ 200 milhões de custos de fretes, que incluíam o transporte de materiais e produtos para a abertura de novas lojas, lançados como investimentos no balanço da empresa. E a prática era corriqueira. Com ela, eliminava-se uma despesa que agia contra o resultado da companhia.

Salários

A mesma inversão de lógica, que transformava gasto em aporte, era aplicada ao pagamento de salários de grupos de funcionários da Americanas. Gente dos departamentos jurídicos e do RH, por exemplo, era incluída na folha de salários de uma empresa digital do grupo Americanas.

Nesse setor de tecnologia da informação (TI), a despesa com a remuneração de pessoal pode ser considerada um investimento. No caso da varejista, no entanto, a inclusão de pessoas de áreas distintas na TI era mais uma forma de fazer evaporar custos.

Estoques

A quantificação dos estoques também não escapava desse enredo de ficção contábil. Ela também era manipulada para que a empresa apresentasse ao mercado um resultado melhor do que o real. Havia um inventário no qual todos os produtos eram lançados, mas esse levantamento era alterado para inflar o Ebitda da companhia (a sigla, em inglês, do indicador de lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização).

Não raro, a devolução de produtos por parte de consumidores (de itens com defeito, por exemplo) não era registrada como tal para não reduzir o estoque e com isso fragilizar as contas no fim de cada período contábil. O efeito colateral dessa prática era que lojas não tinham alguns produtos nas prateleiras, embora eles constassem no sistema da companhia como disponível naquele ponto de venda. Num período de cerca de dois anos, o “estoque falso”, apontam as investigações, chegou a R$ 700 milhões.

O fato é que, na prática, havia um número de baixas que poderia ser feito no estoque em determinado período. Se esse nível fosse superado, o inventário era manipulado para não comprometer o lucro da empresa.

Vendas

A manipulação de dados alcançava ainda as informações sobre o GMV (sigla, em inglês, para Gross Merchandise Volume ou Volume Bruto de Mercadorias). Ele é o indicador do dinheiro que entra na empresa pelo canal digital, sem qualquer desconto ou retirada (comissão, imposto ou frete). Ele é, portanto, o valor cheio, bruto das vendas online.

Ao longo da apuração da fraude, constatou-se que havia um sistema que multiplicava o GMV para que ele alcançasse o número que deveria ser exposto ao mercado, garantindo que a empresa atingisse seu orçamento e as projeções de analistas. Esse mecanismo de multiplicação do GMV poderia ter um fator de até 1,4 vez. Com isso, o resultado do volume bruto de vendas era artificialmente engordado em até 40%.

Quando esse recurso foi descoberto, houve o temor de que a multiplicação fosse acionada de forma automática, à semelhança de um algoritmo. Se isso ocorresse, ela poderia estar em uso mesmo depois de descobertas as fraudes e tomadas as medidas para eliminá-las. Posteriormente, porém, descobriu-se que o artifício era acionado por meio da manipulação de planilhas.

Multiplicação das telas

Como já revelaram as investigações da PF e do comitê independente, um dos principais focos das fraudes na Americanas eram as cartas de Verbas de Propaganda Cooperadas (VPC). Elas são comuns no setor e ocorrem quando uma indústria (de TVs, chocolates ou celulares) remunera o varejista (a Americanas, no caso), quando ocorre um esforço adicional de vendas dos produtos.

Isso pode acontecer quando o varejista inclui os produtos do fabricante em seus materiais de publicidade, como cartazes ou folhetos. Ou mesmo, quando uma loja expõe com maior destaque em seu espaço o artigo de determinada indústria. No caso da Americanas, indicam as citadas investigações, havia VPCs reais e falsas. Estas últimas eram criadas para melhorar o resultado da empresa e cobrir rombos em outras rubricas da contabilidade.

Sabe-se agora, no entanto, que mesmo as VPCs verdadeiras eram “batizadas”. A título de exemplo, esse esquema funcionava assim: a área de TI tomava como base uma carta verdadeira de R$ 100 milhões e criava telas com cem VPCs de R$ 1 milhão.

E por que ocorria a multiplicação das VPCs? De acordo com as investigações, esse era mais um estratagema usado para confundir e esconder das auditorias externas a cartas falsas. Isso porque se houvesse uma carta fraudada entre dez reais, as chances da falcatrua ser descoberta pelos auditores era de 10%. Agora, uma falsa entre cem verdadeiras, ainda que fragmentadas a partir de uma original, essa possibilidade caía para 1%.

Gestão imobiliária

Havia também um modelo de gestão de imóveis que contribuía para produzir resultados senão falsos, imprecisos que auxiliavam na obtenção de números positivos na contabilidade. Muitas vezes, os contratos de aluguel das lojas começavam com descontos. Essas reduções eram oferecidas, em alguns casos, por locadores interessados em atrair a marca para shoppings.

A Americanas, contudo, arrastava ao máximo a recomposição desses aluguéis, mesmo quando terminava o período de desconto, ainda que soubesse que um reajuste era necessário. Para isso, ela se valia de mecanismos jurídicos para jogar o problema para frente.

O lado perverso desse tipo de “prática de gestão” era que a empresa não conhecia seus custos reais. Tal contexto inviabilizava a avaliação da eficiência de uma loja, uma vez que o aluguel era mantido artificialmente baixo. E essa mesma pressão exercida sobre os locadores recaía sobre os fornecedores. Os prazos de pagamento para esses “parceiros” também eram esticados ao máximo. Tudo, segundo as investigações, dentro da mesma lógica: custos para baixo do tapete, com ganhos otimizados a qualquer preço.

Para eventuais manifestações sobre esta reportagem, o Metrópoles procurou a assessoria de comunicação da Americanas e os representantes legais dos principais ex-diretores da empresa, hoje investigados pela PF. Os advogados não quiseram se manifestar. A companhia enviou a seguinte nota:

“A Americanas reafirma que foi vítima de complexa fraude de resultados que envolveu a recorrente manipulação dolosa dos controles internos pelos ex-diretores – aqueles que mais conheciam os controles da companhia e que deveriam zelar pelo melhor interesse da empresa.

A manipulação dos controles, que envolveu vários sistemas e manobras ao longo de anos, foi evidenciada por caminhos distintos de investigação conduzida tanto pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, CVM, assim como pelo comitê independente, com resultados sob sigilo das autoridades e restrição de acesso às partes. A Americanas reitera que é a maior interessada no esclarecimento dos fatos e na responsabilização civil e criminal de todos os envolvidos.”

Artigo anteriorCriminosos usam armas e explosivos durante assalto em pedágio em SP
Próximo artigoGO: homem de 80 anos é morto a pauladas por morador de rua que acolhia