Anos depois, encontrei aquela antiga carta esquecida no computador, à primeira versão de “Amor Platônico Confidencial”. Li devagar e sorri sozinho. Não era apenas um desabafo: era um relicário, um pequeno templo onde o menino de doze anos ainda existia, feito sombra boa no chão da minha memória.

Fechei os olhos e me imaginei de volta àquela sala antiga, com as carteiras riscadas e o quadro verde. Lá estava ela: a professora de Ciências, falando sobre o Reino Animal, enquanto meus olhos de menino a seguiam em silêncio.

Agora eu era o adulto, o professor que escuta, observa e entende que ensinar é ser exemplo, mesmo sem querer. Porque foi isso que ela foi para mim: o meu primeiro amor. E foi isso que aprendi com ela: ser eu mesmo.Naquele fim de tarde, sentei-me à mesa da sala dos professores, xícara de café na mão, e escrevi no caderno:

“Nem todo amor vira história de casal. Às vezes, ele se torna escolha, vocação, inspiração. Meu primeiro amor me ensinou a amar o saber. E isso mudou tudo.”

Aquela carta antiga, guardada por anos, não falava da impossibilidade de um amor, mas do nascimento de um destino. E assim compreendi: certas histórias não se escrevem para serem vividas a dois, mas para acenderem luzes em outros caminhos. O meu foi iluminado por ela. gora, quem sabe, seja a minha vez de iluminar.

Com o fim do ano letivo, tive tempo para rever muitas coisas. Fechei o armário, devolvi alguns livros à biblioteca, tudo muito devagar, como quem encerra um ciclo. Despedi-me dos colegas da escola e desejei-lhes boas festas. Não havia dor, nem saudade ferida, apenas gratidão.

Antes de sair, ajeitei o livro Amores que transformam do escritor e filósofo Luís Lemos debaixo do braço e segui para uma sala, conduzido pelo estudante do 9º ano, Fábio. Ao entrar, dezenas de olhos curiosos se voltaram para mim. Sorri. Talvez, entre eles, houvesse alguém vivendo um amor secreto, inocente e transformador, como o que um dia me marcou. Foi quando eles cantaram:

— Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida!

Demorei alguns segundos para entender. A melodia ecoava, os aplausos batiam em ritmo, e o bolo improvisado sobre a mesa, com velas coloridas, esperava por mim. O aluno Fábio, sorrindo, cochichou:

— Professor, a gente não esqueceu do seu aniversário.

Naquele instante, compreendi a virada da vida: o menino de doze anos, apaixonado em silêncio pela professora, agora era o mestre celebrado por seus alunos. O amor que começara como segredo transformara-se em herança.

Apaguei as velas devagar, não para pedir um desejo, mas para agradecer o milagre que me acompanhava desde a infância: descobrir que o maior destino do amor não é ser correspondido, mas ser multiplicado.

E foi ali, cercado por vozes juvenis, que compreendi que o amor platônico não havia se extinguido; apenas tomara outra forma. Agora, ele habitava em cada olhar, em cada gesto, em cada riso dos meus alunos. Mas qual não foi a minha surpresa quando, diante de mim, surgiu a minha primeira professora, sorridente, como se o tempo tivesse decidido suspender o próprio curso?

Mais uma vez, a onda da paixão me arrebatou, turvando todos os meus pensamentos. Uma febre antiga, adormecida, mas nunca vencida, reacendia-se dentro de mim, contra a qual já não havia defesa. A memória se enraizava no passado, enquanto meus olhos, indomáveis, percorriam a nuca da professora, como se, naquele instante, o universo inteiro se condensasse na curva delicada do seu corpo.

E então, senti minha mão apertar-lhe a cintura como quem toca o próprio mistério do tempo. Seus lábios encontraram os meus num beijo ardente, um beijo que não era só desejo, mas travessia, ponte entre o que já foi e o que ainda é. Por um instante, éramos eternidade. E finalmente, eu, hoje professor Caraíba, compreendi que o amor é a única forma de desafiar o esquecimento.

Luís Lemos é professor, filósofo, escritor, autor, entre outras obras de, “O primeiro olhar” (2011), “O homem religioso” (2016), “Jesus e Ajuricaba na terra das amazonas” (2019), “Filhos da quarentena” (2021), “Amores que transformam” (2024) e “Noite Santa” (2025).

Instagram: @luislemosescrito

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