A queda de duas pontes na BR-319, afetando mais de 140 mil pessoas nos municípios de Careiro da Várzea, Autazes, Careiro e Manaquiri, no interior do Amazonas, foi uma tragédia anunciada. O artigo, “Burying water and biodiversity through road constructions in Brazil”, em tradução literal “Enterrando a água e a biodiversidade através da construção de estradas no Brasil”, alertou o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) sobre a incompatibilidade de obras previstas para a recuperação da rodovia e as características geográficas locais. Em 2021, a publicação foi entregue à cúpula do órgão durante as audiências públicas sobre o Trecho do Meio, realizadas em Manaus.
O assunto é destaque do informativo do Observatório BR-319, lançado neste mês. “Em 2021, publicamos um artigo que previu os desastres com as pontes. As estruturas caíram na época da seca, quando o trânsito aumentou, mas é possível ver nas imagens divulgadas que a água tinha cavado em volta dos suportes das pontes no período chuvoso, de subida das águas, quando o aterramento de Áreas de Proteção Permanente [APPs], na cabeceira das pontes, direcionou toda a força da água para as colunas que apoiam as estruturas. Não é o pulso do rio que é o problema, o problema é o aterramento das APPs, com rampas de acesso em vez de pontes atravessando toda a área”, explicou o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), William Ernest Magnusson, um dos autores do artigo.
A terraplanagem ou aterramento de APP é proibida por lei e configura o crime de acordo com Artigo 63 da Lei nº 9.605 /1998, de crimes ambientais. Essas áreas devem ser conservadas para a proteção de solos e, principalmente, as matas ciliares, porque evitam assoreamentos e mudanças negativas nos rios.
“A construção de estradas na Amazônia geralmente é sinônimo de terraplenagem, mas isto não está de acordo com as melhores práticas internacionais, nem com as leis de proteção do meio ambiente. A proposta para revitalização da BR-319 envolve a recuperação ou reconstrução de bueiros e pontes de curto alcance. Mas essas construções implicam no aterramento de APPs, associadas a rios e igarapés, o que pode causar diversos problemas, desde estruturais até de impacto na biodiversidade local”, disse Magnusson.
“Exemplo do efeito de não respeitar as APPs em volta dos cursos d’água que atravessam a BR-319 é o desabamento de trechos da pista pavimentada, como conferimos durante todo o ano. O rio enche todos os anos, o que provoca a infiltração de água no solo. Quando o rio baixa e ocorre a exfiltração de água no solo, existe o risco desta terra desagregar e levar ao colapso do solo, ao desabamento do que foi aterrado, terraplanado, como acontece com trechos da estrada. Ainda mais em estradas de planícies baixas, como é o caso da BR-319”, destacou o pesquisador.
Para o diretor da WCS Brasil, membro do Observatório BR-319, Carlos Durigan, a rodovia precisa de um serviço permanente de manutenção e monitoramento. “Precisamos saber com exatidão quantos quilômetros da BR-319 são sobre aterros, pois já sabemos que a estrada corta uma extensa região de paisagens aquáticas e áreas de inundação, a região próxima das comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Igapó-Açu, por exemplo, possui uma extensa área de igapós”, disse. “A rodovia é um aterro imenso entre dois grandes rios e cercada por áreas alagáveis. Há pontos sujeitos a deslizamentos e rupturas frequentes da área pavimentada. Isso tudo deveria ser levado em conta na busca de soluções, daí a necessidade de se constituir um núcleo de gestão e monitoramento permanente para discutir questões como estas, além de encontrar as melhores soluções, antes mesmo de tragédias acontecerem, e não uma gestão atrapalhada e que atua sempre com soluções improvisadas”, acrescentou Carlos Durigan.
Reconstrução da BR-319
O atual coordenador do Grupo de Trabalho da BR-319 (GT BR-319) do Conselho Regional de Arquitetura, Engenharia e Urbanismo do Amazonas (Crea-AM), o engenheiro civil Fernando Catunda, avalia que uma obra como a da BR-319 precisa de projetos adequados à realidade amazônica. “Temos cheia, temos seca, a estrada sofre. Precisa de alteamento e sistema de drenagem adequados a isso”, pontuou. Além disso, ele destaca que as obras emergenciais e reparos na rodovia precisam estar de acordo com o atual contexto do Amazonas, ainda que sejam realizadas em trechos sem estudos ambientais, como é o caso do Segmento A. “A BR-319 foi projetada para uma realidade que não existe mais. Atualmente, por exemplo, o peso das cargas transportadas por ela quadruplicou”, disse Fernando Catunda.
O engenheiro também opina que a BR-319, por ser uma das poucas ligações terrestres do Amazonas com outros estados do Brasil, deveria ser prioridade do governo federal. “O Dnit precisa olhar para a nossa rodovia com seriedade, fazer um trabalho de qualidade”, defendeu. “O que é feito hoje na BR-319 é um crime contra os brasileiros, amazonenses, que vivem aqui. É discriminação”, acrescenta se referindo à qualidade das obras e à falta de soluções definitivas para problemas que se repetem.