Nos tempos em que comercial era reclame, acidente de trânsito era desastre e radialista era locutor,  viviam em Manaus as senhoritas Elza, Eliane e Edna. De sobrenome Moreira, as três irmãs há muito haviam adquirido declaração cartorária de estabilidade no mais irremediável dos caritós.

Não que lhes tenham faltado atributos físicos. Fotos antigas e comentários coevos informam que o trio até se gabava de certa semelhança com a então jovem Bety Davis. Burras também não eram, pois o vernáculo para elas não tinha segredos e dominavam com precisão a língua de Voltaire.

Por que, então – me perguntará o leitor –, ficaram tão ilustres damas na bacia das almas?

Nascidas em família que desfrutava da abastança característica dos tempos áureos da borracha, nenhum varão logrou satisfazer as exigências que esse status impunha.

Não se enxerga aquele senhor Freitas. Com aquela aparência de dono de botequim, teve a ousadia de me solicitar uma valsa.

Pior foi comigo, mana. Um tal de Eleutério, que não sei como conseguiu entrar no Ideal Clube, perguntou se poderia participar do nosso próximo sarau.

 — E o senhor Soares, então? Reles amanuense de uma repartição, atreveu-se a me mandar uma carta perfumada, com infinitos despautérios pretensamente amorosos.

E o tempo, esse implacável senhor das idades, ria matreiro desse tipo de diálogo. Passou o tempo e os Freitas, os Eleutérios e os Soares não mais pensaram em valsas, saraus e perfumes, enquanto o espelho não repetia para as três irmãs a saga de Dorian Gray.

Lá estavam elas, velhas e encarquilhadas. E solteiras e virgens.

Moravam num casarão na avenida Epaminondas, única herança que lhes restou depois que os ingleses mostraram o quanto eram bestas e burros os nossos barões que acendiam charutos com notas de mil réis.

Sobreviviam da plebéia atividade do magistério, ensinando francês e português aqui e ali. A senhorita Elza (de quem o prof. Carlos Gomes dizia que andava a passos miúdos com medo de que lhe caísse o cabaço) também lecionava piano, atividade que lhe permitia exclamar, entre um suspiro e outro, diante das aborrecidas alunas:

Ah, não havia sarau em nossa casa em que não me pedissem pelo menos dez vezes que eu tocasse Pour Élise!

 Católicas fervorosas e piedosas, as senhoritas Elza, Eliane e Edna eram filhas de Maria, ostentando, em todas as procissões, com indisfarçável orgulho, as vestes rigorosamente brancas, com o colar de fita azul e a medalha com a imagem da Virgem.

Contam que, de certa feita, na procissão de Corpus Christi, um bêbado que assistia à passagem do cortejo pela Sete de Setembro, perguntou ao seu companheiro de mesa no Bar Americano:

 — Por que essas freiras de branco não se misturam com aquela multidão de preto?

 — Não são freiras, seu leso. São as filhas de Maria, foi a resposta reverente.

Filhas de Maria? Se são todas da idade dessas três que vão aqui na frente agora, elas devem ser é bisavós de Cristo!

 Diga-se em sua homenagem que as três irmãs sabiam de comentários maldosos desse tipo que a seu respeito se faziam na cidade pequena. Sabiam, mas, altivamente, nem tomavam conhecimento, mantendo uma postura serena e altaneira de dignidade, que só servia para espicaçar a inveja ou seja lá qual for o sentimento que o povo nutre por pessoas desse tipo.

Por isso, eram motivo de mangoça as reuniões com que as senhoritas procuravam reviver os famosos saraus.

Todas as quintas-feiras o casarão da Epaminondas recebia. Já não havia lustres nem champanha, nem o velho piano conseguiria mais reproduzir Beethoven. Ainda assim, meia dúzia de intelectuais era presença obrigatória.

Deles, o mais bizarro era o padre Torquato, latinista de primeira linha e impetérrito defensor do vernáculo, a ponto de, para ele, vitrine ser escaparate e coquetel, beberete.

 Às dez da noite, quando era servida a última rodada de chá de capim santo, o vigário de Cristo anunciava a declamação final. Atenção completa, silêncio de sepulcro, o sacerdote erguia-se esplendoroso na sua batina de ébano e lançava:

— De Raimundo Corrêa, As Pombas.

 E era com tanto sentimento que o santo homem desfiava o soneto (no batendo as asas, sacudindo as penas, ele agitava os sagrados braços) que havia quem desconfiasse que ele de fato amasse as gentis avezinhas.

Nos meses de dezembro e janeiro as reuniões eram suspensas. Não que definhasse a veia literária dos convivas, mas porque as irmãs sempre anunciavam uma viagem a Europa. De fato, o casarão ficava rigorosamente fechado durante o período, mas houve quem ficasse matutando na coincidência de, no mês de novembro, todos os anos, as senhoritas pedirem ao português da Casa Dias um rancho duplamente reforçado. Maldades do vulgo, por certo.

Além da missa dominical e de, na sexta-feira santa, irem ao Cine Avenida, com véu e terço, assistir à fita Vida, Paixão e Morte de N. S. Jesus Cristo, as irmãs exercitavam também sua religiosidade com freqüência infalível à novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Desde tempos imemoriais que os padres redentoristas celebram esse culto, não na igreja da santa propriamente dita, mas da sua co-irmã Nossa Senhora Aparecida. No templo, ficam à disposição uns papéis, embriões da cédula única, em que é possível marcar um x ao lado de uma série de itens. Por exemplo: por uma boa morte, para conseguir um emprego, para o marido parar de beber, enfim, toda a infinidade de assuntos que pode exigir a atenção do divino.

Semanalmente, os pedidos são retirados da urna e o padre, durante a novena, lê o resultado numérico da apuração.

Era inevitável, no tempo das irmãs. Quando o padre Leão, arrastando os erres como bom gringo, chegava a essa parte do ritual, vinha o anúncio: Nossa Santa Mãezinha do Perpétuo Socorro recebeu os seguintes pedidos. Podia não haver um voto sequer para todos os outros itens, mas na parte para conseguir um bom casamento, três votos sempre se faziam presentes.

Morreram as senhoritas Elza, Eliane e Edna. Não logrou êxito a intercessão da santa e elas se foram solteiras como nasceram.

Na lápide que lhes encima o túmulo, a inscrição: Aqui jazem Elza, Eliane e Edna, filhas de Maria e irmãs de Cristo, a cuja divina custódia entregaram sua castidade.

Não é o que se comenta entre os vermes.

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