Apressadinha, Ayla não esperou que se perfizesse o ciclo e veio sem completar tempo integral. Nasceu na segunda, 25, antes dos nove meses regulamentares, e, por conta de ser avexada, sofreu sua primeira restrição: ao invés de desfrutar do aleitamento materno, foi recolhida a uma incubadora, na UTI neonatal. Foi lá que a vi logo no dia seguinte. Frágil, nem tão miúda como imaginei, mas completamente dependente dos adultos e das suas máquinas, como foi acontecer, aliás, com todos os humanos, que só conseguimos demonstrar nossa proclamada superioridade depois que atingimos, e há muito, o segundo estágio do enigma da esfinge.

É a sétima vez que me nasce um neto. Seria de esperar que a coisa entrasse na placidez da rotina, com o mero desfrute dos charutos distribuídos pelo pai e a absorção de líquidos alcoólicos em limites acima do normal, eis que não se consegue afastar a secular prática de “beber o mijo”. Tudo isso se faz, mas longe estamos, pelo menos eu, de olhar a nova criatura com essa calma serena que a própria idade a mais e mais vai impondo, talvez até para compensar o que ela mesma já fez de estragos.

Longe disso. Para mim tem sido sempre a experimentação de sensações intensas, que me envolvem sem a mínima cerimônia, transportando-me, como se um tornado fossem, do deleite puro e simples à apreensão mais cruel. Encanta-me o surgimento de um novo semelhante, tanto mais quando, apenas duas gerações acima, tive participação ativa no pôr em movimento os mecanismos do processo que, para gáudio da humanidade, tem características de moto perpétuo. Mas também me causa profunda angústia contemplar a fragilidade exposta no seu mais elevado nível e saber que muito pouco, quase nada, está ao meu alcance para assegurar a plena realização do que virão a ser os anseios e objetivos do novo integrante da “humana lida”.

A verdade é que, no final das contas, resta apenas o “ser avô”, o que não é pouca coisa, bastando lembrar que um gênio da estatura de Victor Hugo já se ocupou do assunto em belíssimos poemas. Não há necessidade, entretanto, de incomodar o poeta francês. Fico com Ana Paula, uma garotinha de nove anos, que, segundo o Jornal do Cartaxo, de Florianópolis, assim e sabiamente se pronunciou: “Um avô é um homem que não tem filhos, por isso gosta dos filhos dos outros. Os avôs não têm nada para fazer a não ser estarem ali. Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam nas flores bonitas nem lagartas. Nunca dizem: Some daqui! Vai dormir! Agora não! Vai pro quarto pensar! Normalmente são gordos, mas mesmo assim conseguem abotoar os nossos sapatos. Sabem sempre o que a gente quer. Só eles sabem como ninguém a comida que a gente quer comer. Os avôs usam óculos e, às vezes, até conseguem tirar os dentes. Os avôs não precisam ir ao cabeleireiro, pois são carecas ou estão sempre com os cabelos arrumadinhos. Quando nos contam histórias, nunca pulam partes e não se importam de contar a mesma história várias vezes. Os avôs são as únicas pessoas grandes que sempre têm tempo para nós. Não são tão fracos como dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós. Todas as pessoas devem fazer o possível para terem um avô, ainda mais se não tiverem televisão”.

É assim que eu estou, é assim que eu sou e é assim que me sinto, agora pela sétima vez, depois que a Ayla respirou e chorou. Se é verdade que não consigo tirar os dentes, é absolutamente certo que não preciso ir ao cabeleireiro. Quanto às histórias, não sei se consigo contar a mesma várias vezes, pois são tantas as que invento, ao sabor do momento e da disposição do ouvinte (misturando dragões, tucunarés e pirarucus), que não me parece possível reproduzi-las na íntegra, de acordo com o original.

Só não abro mão do orgulho de ser avô. Quando me chega aos ouvidos o chamado imperativo “Vovô!?”, a palavra soa como o mais terno dos acordes de uma sonata mozartiana e eu me deixo embalar pelo ritmo da canção. Nela navego, de tudo esquecido, talvez consciente apenas de que uma criaturinha tão meiga me tratou com um carinho que nem sei se fiz por merecer.

Por tudo isso, mesmo concordando com a Ana Paula em que “todas as pessoas devem fazer o possível para terem um avô”, eu diria que para os velhos é premente e mais indispensável que façam o possível para terem um neto. Aí poderão pensar, como penso agora em relação à Ayla, que aquela criança vai ter que ver um mundo melhor, um mundo sem Bush, Pinochet ou Médici, e onde as flores bonitas vicejem sem que ninguém as pise e onde a igualdade deixe de ser mera retórica, por isso que erigida em condição indispensável de sobrevivência.

Sê bem vinda, minha neta Ayla. Acredita que já te depositei em meu coração e que não tomaste nenhum espaço de teu irmão ou de teus primos. Somente ampliaste o tamanho da área que, apesar de já não tão fértil, ainda consegue vibrar de alegria com vocês e por vocês.

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