Eu conto o caso tal como aconteceu. Ou, pelo menos, como me foi contado pela internet. É o seguinte: Meã Shearim é uma comunidade para lá de ortodoxa, situada na cidade de Jerusalém, em Israel. Um cachorro vira-lata, talvez porque encontrou a porta aberta, adentrou o sagrado recinto de um tribunal rabínico e se pôs a latir, ou porque estava com fome ou bem porque há de ter sido a única coisa que aprendeu a fazer ao longo de sua canina vida.
De nada adiantaram os enxotamentos. O cachorro era renitente e os sisudos juízes não encontraram meio de fazê-lo sair do local. E já que se tratava de uma corte de justiça, por que não unir o útil ao agradável (ou, pelo menos, conveniente)? Vai daí que se reúne o tribunal, transforma o quadrúpede em réu e o submete a implacável
julgamento. Com rapidez de fazer inveja a qualquer código de processo, a sentença foi ditada, acredito que em forma de acórdão como é da praxe e uso dos colegiados
julgadores. “Seja o confiado cão apedrejado até a morte”. Essa a essência do julgado,
clara e precisa, de forma a não admitir os tais embargos declaratórios por via dos quais os advogados às vezes tentamos entender o que foi decidido.
Mas, se queremos o mínimo de respeito à verdade, é preciso perquirir e entender a razão que levou os rabinos a tão severo veredito. Há muito tempo, ainda quando “comercial” era “reclame”, um advogado (tinha que sobrar para nós) teria desrespeitado, de alguma forma pouco ortodoxa, aquela mesma Casa em que se busca e se distribui a justiça. Foi, então, julgado o irreverente causídico e a pena que se lhe aplicou foi, nada mais, nada menos, que, uma vez morto, haveria de reencarnar precisamente em um espécime da raça canina.
Ora, os atuais julgadores, já mais sagazes que os seus antigos, em razão mesmo dos modernos recursos que a informática lhes disponibiliza, não precisaram de muito tempo para somar dois mais dois e chegar à óbvia conclusão: o cachorro enjoado, com seus latidos e ganidos, era simplesmente o advogado reencarnado, que voltava para cumprir sua sina de amaldiçoado.
E aí entra a mais profunda filosofia, mesclada com piedosa comiseração: a morte do cachorro por apedrejamento não era uma forma cruel de punir o animal, mas, simplesmente, de liberar a alma do advogado que, por esse meio, haveria de encontrar o descanso eterno, não sei em qual paragem dos muitos paraísos que o sentimento religioso disponibiliza para os crentes e os mansos de coração.
Não sei de onde partiram as maiores reclamações. Dizem que a Sociedade Protetora dos Animais foi veemente no protesto contra o decisório que determinava o fim da vida do cão. Mas dizem, também, que a Ordem dos Advogados de Israel, acho que por meio de sua comissão especializada em assuntos de ectoplasma, foi à loucura, invocando o princípio do “non bis in idem”, para demonstrar que o seu ilustre membro já havia sido punido com a maldição e não poderia receber outra pena pelo mesmo fato.
De qualquer forma, tudo foi em vão. O cão, que é cachorro, mas não é besta, escafedeu-se antes que a sentença fosse executada.