A decisão foi proferida pelos desembargadores André Nekatschalow, Mauricio Kato, Ali Mazloum e pela juíza Luciana Ortiz, da 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª região (TRF-3).
Em primeiro grau, a juíza Paula Mantovani Avelino absolveu o casal, em agosto do ano passado. O Ministério Público Federal (MPF) recorreu, levando o julgamento para a 5ª turma.
30 anos de escravidão
- De acordo com a sentença, entre outubro de 1991 e 29 de julho de 2022, José Enildo e Maria Sidronia reduziram a mulher à condição análoga a de escravo, “sujeitando-a a trabalhos forçados, jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho e moradia”.
- No início da década de 1990, Maria Sidronia teria encontrado a mulher em um abrigo e a levado para trabalhar em sua casa como empregada doméstica.
- No entanto, a vítima nunca teve registro em carteira e morava em uma edícula nos fundos da casa. Mesmo trabalhando na casa e na loja do casal, entre às 7h e 22h, ela não recebia salários.
- A vítima disse em depoimento que Enildo a xingava com frequência, chamando-a de “filha da puta”, “macaca”, “nega do caralho”. Os xingamentos, segundo a mulher, eram motivados por coisas simples, como demora para abrir um portão.
- Ela disse ainda que Maria Sidronia tinha o hábito de filmá-la quando algo não estava do seu agrado, ironizando o trabalho da mulher. Era comum que ela fosse irônica, dizendo expressões como “olha, Xuxa dando o show dela”.
- A vítima afirmou também sofrer torturas psicológicas por parte da patroa, além de agressões físicas – tanto do homem, quanto da mulher. Em um episódio, ela foi trancada na lavanderia e ficou gritando, pedindo para sair. Quando o casal entrou no cômodo, agrediu a empregada com “muitos tapas”.
- Em um surto de fúria, Maria Sidronia chegou a lançar uma cadeira na vítima. Segundo a mulher, essas agressões só ocorriam quando ela estava sozinha com os patrões.
- A vítima relatou que não era impedida de sair, “mas não saía porque não conhecia ninguém e não tinha dinheiro”.
- Ainda em depoimento, a mulher contou precisar trabalhar mesmo com uma lesão grave na perna, que ela acreditava ser uma úlcera.
- A vítima chegou a ser ameaçada de expulsão, em 2017, caso fizesse alguma denúncia sobre a situação que se encontrava.
- Ela também não tinha qualquer documento de identificação, o que é característico das vítimas desse tipo de crime.
- Segundo um Auditor-Fiscal do Trabalho que acompanhou a vistoria judicial na residência em 2022, a mulher estava em uma “prisão emocional”. “Ela tinha a chave da corrente, mas ela não sabia como usar”, disse.
Batalha judicial
Em 2014, uma denúncia foi feita ao Ministério Público do Trabalho (MPT), que assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os denunciados. O acordo previa a regularização da situação da vítima. Além disso, o casal deveria dar um imóvel à mulher. Contudo, o acordo não foi cumprido.
A vítima procurou o Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico (NPJ) da Mooca, do Centro De Referência Especializado de Assistência Social (Creas), em abril de 2022. Ela solicitou vaga para acolhimento e relatou o descumprimento do acordo.
No mês seguinte, em maio de 2022, já com uma vaga de acolhimento disponível, os agentes do NJP compareceram à residência e constataram que o casal estava tentando impedir a saída da empregada. Eles alegaram que ela havia mudado de ideia sobre a denúncia.
Em setembro de 2023, o MPF apresentou denúncia à Justiça. Em março do ano passado, foi realizada a primeira audiência. O órgão ratificou a autoria do casal e a prática de crimes, pedindo a condenação dos réus.
A defesa, por sua vez, afirmou que as questões trabalhistas devem ser separadas das questões criminais. O primeiro âmbito já havia sido julgado, “com condenações pertinentes”. No âmbito criminal, o casal alegou que não houve crime na relação entre os empregadores e a mulher.
Casal chegou a ser absolvido
A juíza Paula Mantovani Avelino, da 9ª Vara Federal Criminal de São Paulo, decidiu em agosto do ano passado pela absolvição do casal. A magistrada alegou que não haveria provas de que a mulher foi submetida, de fato, a situação análoga à escravidão.
Baseou a decisão da juíza o fato de a vítima ter livre acesso à residência, podendo entrar e sair quando quisesse. “Assim, caso estivesse sendo submetida a trabalhos forçados, jornadas exaustivas e/ou qualquer tipo de condição degradante, poderia, na primeira oportunidade que saísse da casa, pedir auxílio em qualquer um daqueles lugares que frequentava”, considerou a magistrada.
Mantovani considerou ainda que demorou para a mulher realizar a primeira denúncia, o que aconteceu apenas em 2014, cerca de 20 anos depois de começar a trabalhar para o casal. Além disso, na ocasião, a vítima relatou ter vínculo afetivo com a família – ponto que também pesou para a decisão da magistrada.
O MPF recorreu da absolvição. E, por unanimidade, a 5ª Turma aceitou parcialmente o recurso, condenando o casal a dois anos de reclusão em regime aberto, substituíveis pelos quatro salários mínimos (dois para cada) e prestação de serviços à comunidade.
Ainda cabe recurso. Questionado, o MPF afirmou que “adianta possíveis manifestações processuais”.
A vítima foi levada para um abrigo em 27 de julho de 2022. O Metrópoles não localizou a defesa do casal.