'Rabo de Peixe': Cena da série portuguesa, que no Brasil ganhou nome de 'Mar Branco' — Foto: Divulgação

Rabo de Peixe é uma vila de pescadores parada no tempo. Situada na Ilha de São Miguel, no remoto arquipélago dos Açores, território português “perdido” no meio do Oceano Atlântico, a comunidade vive imersa na miséria e na monotonia. Tudo que boa parte dos moradores fazem além de trabalhar pelo pão de cada dia é pensar em como sair de lá. Imagine, então, como o cotidiano da população ficou de cabeça para baixo quando, em junho de 2001, centenas de pacotes cheios de cocaína pura surgiram boiando perto do cais de Rabo de Peixe. Uma multidão avançou sobre a mercadoria. Algumas pessoas levaram carrinhos cheios de droga para casa. Foi o início de um trauma coletivo.

O acontecimento, que entrou para a história do arquipélago, é o pano de fundo da ótima série “Rabo de Peixe”, da Netflix, que estreou no Brasil com o nome de “Mar branco”. A produção portuguesa conta a história de Eduardo (José Condessa), um jovem e pobre pescador que, sem perspectivas no horizonte, convence os amigos a distribuir centenas de quilos da cocaína que foi dar na praia do vilarejo.

A droga que foi parar na orla da comunidade estava sendo levada da Venezuela para a Espanha num veleiro modelo Sun Kiss 47 de 14 metros de cumprimento. Em um dia de vento muito forte, o mastro se partiu, inviabilizando a continuação da travessia. A tripulação decidiu ancorar perto da Ilha de São Miguel e escondeu a mercadoria numa gruta a poucos quilômetros de Rabo de Peixe. Mas a força do mar dentro da gruta fez com que os pacotes se desprendessem, levando o carregamento para a praia. Numa reportagem para o “El País” em 2017, as jornalistas Macarena Lozano e Rebeca Queimaliños, que estavam produzindo um documentário sobre o tema, contam como aquilo afetou o vilarejo.

'Mar Branco': José Condessa (à frente) vive Eduardo, o personagem principal — Foto: Divulgação
‘Mar Branco’: José Condessa (à frente) vive Eduardo, o personagem principal — Foto: Divulgação

Os efeitos do episódio no vilarejo de cerca de 8 mil habitantes foram os piores possíveis. Diz-se que a comunidade ganhou seu nome porque os moradores vendiam o peixe e ficavam com o rabo e cabeça para comer. Como a cocaína é uma droga cara na Europa, o consumo local era irrisório, limitado a moradores mais abastados de Ribeira Grande, cidade em cuja periferia está situada a vila de pescadores. De uma hora pra outra, o pó branco se tornou onipresente. Como as pessoas tinham pressa em vender o produto, e como havia muito mais oferta do que demanda, tulipas de chope com cocaína até a boca eram compradas pelo valor de 1kg de picanha no Brasil de hoje.

Rumores dão conta de que idosos colocavam cocaína no café com leite. De acordo com dados não oficiais reunidos pelo jornal português “Público” foram 20 mortes e centenas de internação por overdose ou intoxicação nas três semanas seguintes ao desembarque. Os hospitais ficaram lotados, com médicos exaustos implorando para que as pessoas parassem com aquilo.

A polícia se esforçava para recolher a droga de posse dos cidadãos, encontrar a embarcação que levava o carregamento e prender responsáveis. Depois de semanas de buscas, os agentes localizaram um iate no porto de Ponta Delgada, capital da ilha de São Miguel, com um pacote de cocaína em um fundo falso. Flagrado na embarcação, o italiano Antoni Quinzi foi a única pessoa presa no episódio. Ele colaborou com as investigações para localizar a mercadoria dispersa, mas não escapou de receber uma pena de 9 anos e dez meses de prisão. Ainda hoje, seu nome é conhecido em Rabo de Peixe, apesar de praticamente nenhum morador dizer que o tenha visto na época.

O impacto na saúde foi grande. Os moradores ricos de São Miguel se internaram em clínicas de luxo para dependentes químicos na Europa. Entre os mais pobres, muitos buscaram a heroína depois que a cocaína “do italiano” acabou e já não se encontrava na ilha produto com o mesmo nível de pureza. Curiosamente, quando a mercardoria ilegal apareceu no mar, o governo português estava preste a descriminalizar todos os tipos de droga. Mas ninguém tinha previsto algo como aquele episódio. As autoridades locais foram obrigadas a criar postos ambulantes de atendimento para a população. As consequências do episódio foram sentidas durante vários anos.

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