Heleninha chega perto de mim e proclama: “Vovô, olha como eu já estou grande; estou batendo quase no teu pituco”. Vamos traduzir: “pituco” é um termo inventado e usado por ela própria nos tempos de amamentação e com o qual reivindicava o direito de uso e abuso quanto ao seio materno. Temos, pois, como não parece difícil inferir, que a menina estava toda gabola porque, em altura, sua cabeça estava para atingir a região em que se situa o peito do avô. Tudo terminou em risada, mas este velho ficou a matutar, em íntima e inútil filosofia, sobre qual será a razão que leva as crianças a esse intenso desejo de crescer e virar adulto.
Dir-me-ão os críticos mais ou menos descansados: “Ora, mas que tolice. Chega a ser intuitivo que assim pensem e queiram os infantes. Afinal de contas, vivem eles num mundo em que os adultos mandam e desmandam, inclusive ditando-lhes ordens e comandos que, por não entenderem, hão de receber como uma espécie determinação divina”. Recebo o ralho com humildade e me declaro vencido, mas não convencido. Longe de mim acreditar que falta razão ao fictício admoestador. Nada disso. Apenas, talvez, me deixo levar por uma divagação inconsequente, cheia de um superado romantismo (quem sabe?), para ter como estabelecido que a superação da época da inocência, mesmo sendo inevitável, não deixa de carregar seu quinhão de crueldade.
Os mais antigos, aqueles que, como eu, já estão na sala de espera do nada, hão de se lembrar do lamento de Ataulfo Alves: “Eu daria tudo o que tivesse, pra voltar aos tempos de criança”. E não se diga que o poeta está a clamar por uma vida de fausto e luxo. Não. Recorda-se apenas de que, no seu “pequenino Miraí”, ele jogava botão sobre a calçada, ao mesmo tempo em que canta a “saudade da professorinha que me ensinou o bê-a-bá”. E pergunta: “Onde andará Mariazinha?/Meu primeiro amor onde andará?”. Não sei se teve resposta a angústia do bardo e se ele voltou a ter nos braços a menina-moça que lhe acalentou os anos pueris. Sei apenas que eu próprio, trazendo tais versos para a memória, disponho-me a entender o desejo da Heleninha, mas me disponho ainda mais a aproveitar com intensidade redobrada este período da sua delicada ingenuidade.
Porque ele não tem preço. Nem volta, salvo no fértil e vasto campo da poesia, aonde ele pode comparecer como reminiscência para atestar, como o fez o próprio Ataulfo, que “era feliz e nem sabia”. O pior é que, sem preço e sem volta, ainda é curto o tal tempo. Fugidio, fugaz, ele se evola com rapidez de raio, criando nos mais velhos um misto de raiva e remorso por não terem sabido aproveitar e apreciar como deveriam as delícias que só as crianças conseguem propiciar.
Como não lamentar que tenha sido tão breve o episódio surreal que presenciei numa noite da semana passada? Estava eu na varanda de casa, dedicando-me ao irreversível vício do tabagismo, usado como intervalo entre uma leitura e outra ou depois de pausar o filme na televisão. Chegam juntas Heleninha e sua prima e pareceira, do mesmo tope, a Ayla. Sentam-se na mesma cadeira e ficam me olhando. Ayla dispara: “Vovô, por que que tu fumas?” Explicação imediata da Helena: “Porque se ele parar de fumar, ele morre e vira caveira”. E a ponderação sublime: “Então não para de fumar, tá, vovozinho querido?” Quase me desmancho de satisfação, de euforia, de leseira de avô mesmo, que só nós podemos saborear a contento uma coisa tão gostosa como essa. O mais grave é que, depois da exortação assim feita, as duas saíram juntas para o quarto, onde algum desenho animado servia de atração. Eu, todo besta, terminei e apaguei o cigarro e igualmente entrei. Levei um susto: Ayla veio correndo para os meus braços, a bradar: “Vovô, vovô, por que tu parou de fumar? Eu não quero que tu vires caveira”.
Vai longe, muito longe, o tempo em que eu próprio jogava botão de caroço de tucumã, no porão da velha casa da rua Leonardo Malcher. O tempo em que o professor Valois, franzino e moreno, me levou pela mão para ver as águas do Rio Negro que haviam invadido a cidade e estavam lambendo a calçada do Relógio Municipal. O tempo em que dona Lucíola, costurando na máquina Singer, se punha a entoar os acordes de “Branca”, lançando na tarde a melodia: “Há tempos que a vi/Eu a conheci/Ela era linda um primor de amor/Misto de sonho e de flor”. O tempo em que minhas irmãs, fardadas de azul e branco, ansiavam pelo 24 de maio, data em que, muito prosas, participavam da procissão de Nossa Senhora Auxiliadora, a partir do colégio do mesmo nome, em que estudavam. Do tempo em que meu irmão, também aluno salesiano, contava as histórias do padre Filinto, no colégio Dom Bosco, e em que ele e eu exibíamos muito orgulhosos a faixa amarela da cruzada eucarística, além de disputarmos a primazia de ajudar à missa das sete na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, celebrada pelo padre Leão.
Tudo isso vai mesmo muito longe. Tudo isso não tem mesmo volta. Mas é por isso que, enquanto mergulho de cabeça no mundo encantado das minhas netas, sugando o que posso da sua tão pueril ledice, fico a acreditar que eu posso perfeitamente adotar a mesma conclusão de Ataulfo Alves. Não é inveja; apenas, compartilhamento.