Ao atuar no exercício de sua função, o agente público representa a administração pública, situação que lhe sujeita a um regime jurídico diferenciado de deveres e prerrogativas. Se de um lado está sujeito a sanções próprias e mais rigorosas por eventuais desvios, por outro é razoável que se prevejam tipos penais protetivos de sua atuação.
Com esse entendimento, o Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal negou provimento a ação que pedia a inconstitucionalidade do crime de desacato. A tese aprovada é: “foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do artigo 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato”.
A decisão confirma a jurisprudência já pacífica de ambas as turmas do STF: consideram o desacato compatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe a censura e o cerceamento, ainda que indireto, à liberdade de expressão, e da qual o Brasil é signatário.
A ação foi levada ao Supremo pelo Conselho Federal da OAB, segundo o qual a tipificação do desacato viola os princípios constitucionais fundamentais da liberdade de expressão, da legalidade, da igualdade, do Estado Democrático de Direito e o princípio republicano.
Para o relator, ministro Luís Roberto Barroso, não há incompatibilidade entre o tratado internacional e o artigo 331 do Código Penal. Além disso, a Corte Americana de Direitos Humanos nunca se pronunciou sobre a norma, e seus precedentes relacionados a desacato não se aplicam diretamente ao caso brasileiro.
“Nem o texto expresso da Convenção, nem a jurisprudência da Corte vedam que os Estados-Partes se valham de normas penais para a proteção da honra e do adequado funcionamento da Administração Pública, desde que de modo proporcional e justificado”, afirmou.
Deveres e prerrogativas
Segundo o relator, ao atuar no exercício de sua função, o agente público representa a administração pública, situação que lhe sujeita a um regime jurídico diferenciado de deveres e prerrogativas. Por um lado, é punido de forma mais rigorosa do que os particulares quando consideradas as mesmas condutas, além de possuir delitos funcionais próprios.
Em contrapartida, suas prerrogativas visam conferir meios para que possam atender adequadamente ao interesse público, como estabilidade e irredutibilidade de vencimentos. “Também no campo penal é razoável que se prevejam tipos penais protetivos da atuação dos agentes públicos. É nesse contexto que se justifica a criminalização do desacato”, afirmou.
“Não se trata de conferir um tratamento privilegiado ao funcionário público. Trata-se, isso sim, de proteger a função pública exercida pelo funcionário, por meio da garantia, reforçada pela ameaça de pena, de que ele não será menosprezado ou humilhado enquanto se desincumbe dos deveres inerentes ao seu cargo ou função públicos”, acrescentou o ministro.
Se a diversidade de regime jurídico entre agentes públicos e particulares é uma via de mão dupla, as consequências previstas são diversas não somente para quando são autores dos delitos, mas também quando são vítimas.
Interpretação restritiva
O voto de Barroso ainda aborda a interpretação que deve ser dada ao crime de desacato. É precisamente essa questão que permeia a discussão: como garantir que a aplicação da norma penal não sirva para tolher a liberdade de expressão garantida pela Constituição. Essa aplicação deve ser restritiva
O crime deve ser praticado, por exemplo, na presença do funcionário público, o que não abrange ofensas pela imprensa ou nas redes sociais. Além disso, não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função ou se não perturbar ou obstruir a execução das funções do funcionário público.
Por estarem mais expostos ao escrutínio público, os agentes públicos devem ter maior tolerância à insatisfação do particular. Também devem relevar eventuais excessos na indignação ou discordância. O ministro elenca exemplos de casos graves e evidente menosprezo à função pública.
“A prolação de ofensa grosseira e exagerada ao agente de trânsito que, no cumprimento de seu dever, procura realizar testes de alcoolemia; o rasgamento de mandado judicial entregue pelo oficial de justiça; o desferimento de tapa em funcionário público que procura cumprir seu dever etc.”
Maioria formada
Oito ministros aderiram ao voto do relator. Para o ministro Gilmar Mendes, a Constituição, ao tutelar a honra, a intimidade e a dignidade da pessoa humana — “direitos conferidos a todos, sem distinção de qualquer natureza” — recepcionou a norma do desacato prevista na legislação penal.
“O fato é que a liberdade de expressão não pode amparar comportamentos delituosos que tenham, na manifestação do pensamento, um de seus meios de exteriorização”, afirmou o ministro Celso de Mello, em voto.
O ministro Alexandre de Moraes ressaltou que, ainda que agentes públicos estejam sujeitos a um grau de crítica mais acentuados, casos extremos autorizam a tutela penal, “em resgauardo ao interesse público subjacente à função estatal exercida por eles”.
Votos vencidos
Ficaram vencidos os ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Para Fachin, seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional, o crime é inconstitucional. Seu efeito é provocar o que define como chilling effect: o uso legítimo da liberdade de expressão é evitado por receio de que as sanções possam ser aplicadas, mesmo sem base legal para isso.
Também chamou a atenção para a atribuição de valor maior à conduta do funcionário público. Como exemplo, aponta que a ofensa a um médico de hospital particular seria enquadrada como injúria, com menor pena do que a ofensa praticada ao médico de um hospital público, a qual incidiria o crime de desacato. “Mesma conduta, mesmo serviço, mas distintamente valoradas pelo legislador”, afirmou.
Assim, justamente porque os funcionários públicos estão sujeitos a um maior escrutínio é que devem ter maior tolerância a discursos e palavras contra eles dirigidos.
“O tipo de desacato é demasiadamente aberto e não permite distinguir críticas de ofensas. Ainda que se adote a interpretação defendida pelo relator, no sentido de não se admitirem ofensas praticadas na imprensa, nem as que sejam feitas longe da presença do funcionário público ou quando fora do exercício de suas atribuições, a abertura do tipo não esclarece se ação não se sobrepõe a outras condutas, como a de resistência ou a de desobediência”, concluiu o ministro Fachin.
A ministra Rosa Weber seguiu a mesma linha, destacando que, no caso da tipificação do crime de desacato, sobressai o particular interesse social em que seja assegurada a livre opinião relativamente ao exercício de função de interesse público.
“Uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento”, apontou.
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ADPF 496
(Consultor Jurídico)