Quando o Supremo recebeu a denúncia contra os implicados na trama golpista, publiquei um “viva” à democracia, no Facebook. Uma pessoa fez um comentário singelo, formulando esta pergunta: “Isso é democracia?” Confesso que fiquei perplexo. Afinal, não consigo vislumbrar em que momento das investigações ou dos procedimentos judiciais foi desrespeitada alguma regra do nosso direito positivado. Pus-me a considerar que o simples fato de poder formular a pergunta é já indicativo claro de que as regras postas estão sendo respeitadas.

Senão, vejamos. Em 1968, a ditadura militar que já infelicitava o Brasil há quatro anos, conseguiu superar a si própria em termos de abominação. Foi quando deu a lume o hediondo Ato Institucional número 5, o documento mais vergonhoso de que se tem notícia na curta história nacional. Um golpe dentro do golpe, serviu para estreitar ainda mais a pequena margem de liberdade que restava para o povo. Suprimiu-se o habeas corpus e foi proibido o exame judicial de qualquer decisão tomada com base no macabro documento. A coisa chegou a tal ponto que (e cito à guisa de pequeno exemplo) o então vereador por Manaus, Fábio Lucena, foi processado por ter que recomendado da tribuna da Câmara que fossem rasgadas as guias do IPTU. Isso, singelamente isso, fez com que o parlamentar fosse denunciado pela prática de crime contra a segurança nacional. Foi julgado perante a Auditoria Militar federal, em Belém. Tive a honra de ser seu advogado.

Pois muito que bem. Digamos que, naquela época, o autor do indigitado comentário, tivesse formulado a mesma pergunta. Ou, se quisesse ser mais objetivo e optasse por afirmar ao invés de perguntar, dizendo, então: “Isto é uma ditadura”. Não ficaria em liberdade por mais de meia hora, se tanto. Teria conseguido traçar um caminho  direto e sem obstáculos para o cárcere, sem necessidade de qualquer procedimento burocrático, como expedição de mandado e quejandos. Seria preso e pronto. O que aconteceria com ele na cadeia, iria variar de acordo com o humor de quem lhe estivesse com a guarda. Poderia mofar na cela, sem processo e sem visita. Poderia, igualmente, ser entregue aos cuidados de algum seguidor do coronel Ulstra. Aí, passaria por coisas que estão mais para o domínio da ficção científica. Não um reles pau-de-arara. Já era coisa do passado. Os torturadores se tinham refinado e o emprego de métodos científicos era comum.

Mas vejam que estou falando de boas hipóteses. Nada impediria que o nosso bom comentarista, depois de passar pelas agruras do inferno dantesco, simplesmente desaparecesse da face da terra. Hoje, é de conhecimento nacional o imenso número de covas clandestinas que foram descobertas depois da redemocratização. Havia, ainda, modos mais, digamos, requintados. Aviões ou helicópteros da Força Aérea alçavam voo e sobrevoavam o Atlântico. Diante da infinitude da paisagem, os tripulantes, talvez por tédio ou por simples prazer, lançavam para as profundezas do oceano os corpos de brasileiros que tinham cometido o terrível crime de pensar diferente dos militares. Na verdade, não fazia diferença se eram cadáveres ou pessoas: vivos ou mortos, centenas de compatriotas foram assim despejados nos domínios de Netuno.

Dando-se o caso de o preso não ter resistido às sessões de tortura, também era possível desfazer-se do incômodo corpo da vítima, esquartejando-o e dissolvendo as partes em ácido. Já vi isso num filme de terror.

Por tudo isso, cuido lícito concluir que o autor do comentário é jovem. Não viveu os pavorosos anos da ditadura militar. Mas não custa nada estudar História. Se o fizer, com certeza reformulará seu pensamento. Custou, e muito, a guerra contra a opressão. É impensável que se queira fiquem impunes os que, por natureza ou estupidez, ousaram pretender a volta da escuridão. Isso, sim, seria crime de lesa pátria. O “intrépido colosso” já não suporta continuar “deitado eternamente em berço esplêndido”. Levanta-se e diz “não” à tortura, à violência e à arrogância. Diz “não” ao golpe e ditadura.

Com atraso, respondo ao comentário: é democracia, sim. Burguesa, mas é. Lembremo-nos de que nenhum dos golpistas foi torturado. Tanto basta.

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