A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) reuniu, nesta semana, dezenas de depoimentos de ribeirinhos atingidos pelas recentes operações da Polícia Federal (PF) no rio Madeira. As ações, realizadas entre os municípios de Manicoré e Humaitá, resultaram na destruição de 277 balsas e deixaram um rastro de medo, prejuízos materiais e impactos sociais.

Os defensores públicos Ricardo Paiva e Theo Costa, integrantes do Grupo de Trabalho Teko Porã – Vida Digna, estiveram nas comunidades para registrar os relatos e avaliar possíveis medidas judiciais em defesa das famílias afetadas.

‘A gente mora nas balsas’

O ribeirinho Luiz Gonzaga Nascimento, 55 anos, trabalha desde os 12 na extração de ouro no Madeira. Ele conta que a atividade tornou-se essencial à sobrevivência das famílias locais após as enchentes mais severas destruírem as plantações.

“Eles (da PF) dizem que estão expulsando invasores, mas somos nós, moradores daqui. Eu nasci e me criei na beira do rio. As balsas são nossas casas”, desabafa.

Segundo Gonzaga, em uma das operações, os agentes explodiram quatro bombas em sua embarcação e abandonaram uma dinamite que não detonou, sendo posteriormente manuseada por crianças da comunidade — um episódio que quase terminou em tragédia.

‘Ninguém quer garimpar, é necessidade’

Outros ribeirinhos relatam situações semelhantes. Isaías Lopes, pai de um menino de três anos, perdeu a balsa e todo o sustento durante a operação Boiúna, em setembro.

“Chegaram atirando, jogando bomba, sem deixar a gente salvar nada. Fui tratado como bandido, mas nunca roubei nada de ninguém. Só quero sustentar minha família”, disse.

A agricultora Iassis do Carmo, da comunidade Santo Antônio do Pau Queimado, lamenta:

“As cheias acabam com as plantações e as balsas são destruídas. Os meus filhos ficaram sem nada. Eu queria que os governos organizassem o garimpo em cooperativas.”

Impactos na educação e no cotidiano das comunidades

Professores da rede municipal confirmam que os garimpeiros são, em sua maioria, pais de alunos e moradores locais, não invasores.

“Os garimpeiros não são bandidos, são trabalhadores das comunidades, pais dos nossos alunos”, afirma a professora Marina Viana Pinto.

As explosões e voos rasantes de helicópteros geraram pânico nas escolas e afetaram o aprendizado. “As crianças ficaram com medo. Quando a operação aconteceu, foi na semana de provas do CAEd, e as médias caíram por causa do abalo psicológico”, relatou a gestora escolar Alcilândia Lopes.

Defensoria vai cobrar reparação

Os defensores constataram que as ações da PF afetaram diretamente o transporte escolar e o cotidiano das famílias. “As crianças deixaram de frequentar as aulas para ajudar os pais a retirar pertences das balsas destruídas”, destacou Theo Costa.

“A Defensoria vai construir um plano de atuação e pedir reparação pelos danos causados, além de propor medidas para garantir que as operações tenham controle e respeito à população ribeirinha”, afirmou Ricardo Paiva.

O prefeito de Manicoré, Lúcio Flávio, agradeceu o trabalho da DPE-AM e disse que o município deu apoio logístico às visitas. “A Defensoria veio buscar a verdade para defender juridicamente as famílias que sofreram tanto”, afirmou.

Operações e novos desdobramentos

O GT Teko Porã – Vida Digna acompanha a situação desde julho e já havia constatado que os maiores afetados são os pequenos garimpeiros artesanais. Segundo a DPE-AM, as explosões lançadas pela PF — mais de 1.500 desde 2021 — causam mortandade de peixes e contaminação do rio por diesel.

Em setembro, a Defensoria entrou com ações no STJ e no TRF1 pedindo a suspensão do uso de explosivos, mas os pedidos foram negados. Na última terça-feira (7), o órgão recomendou ao Senado Federal a criação de uma CPI para investigar excessos e abusos durante as operações no Madeira.

Sobre o GT Teko Porã

O nome “Teko Porã”, do tupi-guarani, significa “belo caminho” ou “bem viver” — uma filosofia presente em povos indígenas da América do Sul. O grupo da Defensoria busca garantir que políticas públicas respeitem a dignidade e o modo de vida das populações tradicionais da Amazônia.

 

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