Carlos Santiago

No ano 2.125, às seis horas da manhã, numa cidade quente e fedida, controlada por malfeitores, em que músicas religiosas tocam em toda parte e com gangues que autorizam os horários de mobilidade da população, Diógenes caminha rapidamente nas ruas com máscara no rosto rumo ao cemitério abandonado que tem uma pichação no muro que diz: “aqui ratos comem ratos”. Ele ia visitar os restos do ser mais extraordinário que conheceu e teria que passar pelos esqueletos que vampirizam o presente daquela cidade.

Na rua central do Sepulcrário, jazigos quebrados de pessoas que foram poderosas e que não acreditaram que o poder é passageiro e nem na finitude da vida. Agora, estavam lá, abandonadas, os ossos dividindo os espaços com os roedores. E o último coveiro, com 70 anos de idade, herdeiro da profissão do pai, apenas cuidava da sepultura de seu melhor amigo, enterrado debaixo de um pé de mangueira, sem autorização.

Diógenes andava entre as sepulturas, logo avistou túmulos de uma família que comandava um órgão público, os descendentes ainda estavam no mesmo lugar, depois de um século. A foto encardida de uma senhorinha sorrindo, dessa família, chamava atenção. “Ela adorava ser bajulada, não deixava publicar uma foto dela sem filtro, era vaidosa demais”, dizia o pai de Diógenes quando ele era criança e acompanhava o seu genitor no exercício da profissão de coveiro.

Em outra área do cemitério, uma tumba com inscrição no bronze, lembrava a “bravura” jurídica do falecido, como membro de um colegiado de Tribunal de Justiça. Ele aproveitou bem o cargo, botou parentes pra dentro do Judiciário. Tinha tanto poder, no Estado de autoridades com “rabos presos”, que só lhe faltava escolher o juiz de futebol, recordava o coveiro das conversas sobre o morto com os estudantes de criminologia que raramente visitavam o local.

No setor em que os mausoléus de políticos estavam, o odor era sempre insuportável. Alguns presidiram o Poder Legislativo, outros foram administradores públicos. Muitos responsáveis pelas condições daquela cidade. Seus descendentes continuavam reproduzindo as práticas que levaram aos status de bilionários. Usavam o Estado para montar negócios lucrativos envolvendo concessões de espaço público, corrupção e distribuição de sinecuras.

O velho coveiro seguia o seu caminho. Desejava estar próximo do seu grande amigo, digno de homenagem. Ele não suportava viver naquele município de intolerância religiosa, de facções criminosas que controlam as ruas, de um ambiente que exala mau cheiro, em que maioria dos habitantes vive sob medo, de mídia financiada com os tributos para não revelar os desvios de dinheiro e de instituições públicas dominadas por interesse privado.

Na parte de baixo do cemitério, restos de pessoas próximas do poder estão sepultadas. Conhecidas como bajuladoras, dedicavam livros e comendas, anualmente, aos dominantes. Uma delas morreu, como todo bajulador, abrindo portas e servindo café quente ao chefe da repartição pública.

Depois da cansativa jornada, finalmente Diógenes chegou ao destino. Lá, debaixo da linda árvore, o seu companheiro descansava na infinitude do Cosmo. Ele retirou a máscara e sorriu. Na modesta lápide, um epitáfio explicava muito sobre o pequeno ser que foi enterrado ali pelo coveiro e admirador:” Hélio viveu na poesia e ao sabor de Sofia”.

Passou horas conversando com o amigo morto. Contou-lhe como era difícil viver num mundo sem poesia, sem amor e sem alegria. Só existia ganância e dor.

Em seguida, o coveiro se despediu de Hélio. Foram 15 anos de amizade, o único que Diógenes acreditava que tinha um lugar no Céu. Foi um cachorrinho que só lhe deu amizade e alegrias. O coveiro partiu com máscara para continuar enfrentando o dia a dia de uma cidade triste, quente e fedida.

Sociólogo, Cientista Político e Advogado.

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