Como professor, sempre acreditei que a sala de aula é mais que um espaço de transmissão de conteúdos, é um lugar de escuta, de troca, de encontro entre histórias e realidades diversas. Dessa forma, sempre procurei interagir com meus alunos de forma aberta, promovendo o diálogo e o respeito mútuo. Certa vez, durante uma aula sobre “respeito às opiniões adversas”, um estudante pediu a palavra. O que ele compartilhou naquele momento ultrapassou os limites do conteúdo: foi um testemunho de vida que tocou a todos e abriu caminhos para outras vozes.
— “Professor, eu venho de uma comunidade muito pobre, do interior do Amazonas. Para quem nasce lá, só existem duas opções: ou tu vais ser padre ou militar. Entrei para o seminário aos 15 anos. Fiquei lá por dois anos. Um dia, o padre me chamou à sala dele e me disse: “Filho, você não continua mais na congregação. Siga o seu caminho. Não perca a fé”. Quando completei 18 anos, entrei para o Exército. Um dia, o comandante me chamou e disse: “Aqui não é lugar pra pessoas sensíveis. Você não serve para o Exército Brasileiro”. Saí daquela cidade sem batina, sem farda, mas com os rótulos que me colocaram. No entanto, eu tinha uma certeza profunda no peito: a necessidade urgente de me encontrar, de desbravar um caminho que fosse verdadeiramente meu. Foi um processo lento, de passos incertos e reflexões silenciosas, até que, aos poucos, compreendi que a vida não se limitava apenas aquelas opções. Percebi que o existir é feito de escolhas múltiplas, de estradas que se cruzam e se reinventam a cada momento. Que a vida é uma jornada complexa e rica em possibilidades. Hoje, sigo um rumo diferente daquele que me foi inicialmente traçado. Ainda guardo comigo a fé que me sustenta, ainda carrego a força da luta. Só que agora, essa luta é por mim, por minha verdade, e por todos aqueles que caminham comigo, buscando liberdade e sentido”.
Motivada pelo relato do colega, uma estudante levantou a mão e tomou a palavra. — “Eu não tenho um corpo, eu sou corpo. Sou essa mulher que vocês estão vendo: baixa, preta, gorda e lésbica. E não, não tô pedindo desculpas por isso, nem que tenham pena de mim. Carrego no meu andar o peso da minha história, das minhas avós, das minhas irmãs de pele e de luta. Chamam-me de exagerada, raivosa, dramática. Mas não dizem isso quando um homem grita. Com eles, é pulso firme, personalidade forte. Comigo, é insuportável, gorda, feia. Mas eu sigo. Porque o meu corpo, esse que senta largo, ocupa espaço no ônibus, que sua, dança, cansa, é meu grito mais profundo. Não vim ao mundo pra ser moldada no gosto dos outros. Não fui feita pra caber em revista de moda, nem pra agradar chefe, nem pra ser invisível. Eu existo. E existo assim: grande, preta, mulher, lésbica e plena. Sou plena! Já tentei caber. Fiz dieta que quase me apagou, alisei o cabelo até o couro arder, abaixei o tom de voz pra não assustar ninguém. Mas um dia, me olhei no espelho, de frente, inteira, e disse: chega. O corpo da mulher preta é sempre o mais vigiado. Ou é fetiche, ou é piada. Mas nunca é só corpo. Nunca é só humano. Então, escolhi ser minha própria revolução. Cada passo meu é desobediência. Cada dobrinha, memória. Cada silêncio rompido, um espaço reconquistado. E se meu modo de existir incomoda, é porque ainda tem muita gente precisando aprender a respeitar a vida do outro. É por isso que eu digo, professor: eu não tenho um corpo, eu sou corpo. E estou viva”.
Apesar do interesse de muitos em se manifestar, o horário me permitiu ouvir apenas mais um estudante. — “Sou descendente direto de um povo que já estava aqui antes dos invasores, antes de qualquer mapa. Trago no corpo os traços da floresta: olhos escuros e atentos, cabelo negro que cai liso sobre os ombros, pele marcada de sol. Mas sou também um corpo que desafia a moral. Sou gay. E o mais bonito é que não fui excluído pelos meus parentes, nem pela minha comunidade. Pelo contrário, me reconecto com o que tentaram apagar: os afetos livres de antes da colonização, os corpos que dançavam sem culpa, o sagrado presente em cada forma de amar. Sou herdeiro dos anciãos, dos sábios da floresta. Carrego o peso de uma resistência dupla: por ser indígena num país que ainda se recusa a me ver, e por ser gay, num mundo que mede corpos pelo desejo, pela posse, pelo “certo”. Não ando curvado. Ao contrário: meu gesto é erguido, meu riso não pede licença. Uso pulseiras de sementes no pulso e um brinco de pena na orelha esquerda, como quem diz: “Estou inteiro aqui e não me encolho pra caber no teu medo”. Na aldeia, cultivo com sabedoria o tempo do coletivo. Na cidade, enfrento olhares atravessados, perguntas invasivas, mas não perco o eixo. Tenho orgulho de amar quem amo, de amar como amo. Ser eu mesmo é um ato político, revolucionário e espiritual. Danço no ritual sagrado da minha etnia e na rua. Oro em Nheengatu e em silêncio. Sei que minha existência incomoda porque é liberdade viva, um corpo que não cabe na lógica da opressão, mas que cabe inteiro, na beleza do mundo”.
Ao ouvir essas histórias, compreendi que ensinar não é apenas transmitir conhecimento, mas abrir caminho para que cada voz possa existir, ser respeitada e reconhecida em sua singularidade. É nesse encontro de trajetórias diversas que se constrói uma verdadeira educação, onde a escuta e o diálogo são sementes de liberdade e transformação. Por isso, ao final de cada aula, sinto que o maior ensinamento que recebo vem dos meus alunos, e é nessa troca que encontro a minha realização pessoal e profissional.
Luís Lemos é professor, filósofo, escritor, autor, entre outras obras de, “O primeiro olhar” (2011), “O homem religioso” (2016), “Jesus e Ajuricaba na terra das amazonas” (2019), “Filhos da quarentena” (2021), “Amores que transformam” (2024) e “Noite Santa” (2025).
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