Isan tem dezenove anos. Que inveja! – hão de dizer todos os velhos como eu, lembrando das delícias daquela idade, quando as energias estão intactas e os sonhos vagueiam com a liberdade dos ventos. Verdade. Infelizmente não absoluta como a saga do Isan está aí para demonstrar. Sem nunca ter colocado um gole de bebida alcoólica na boca, esse rapaz, mal tendo então completado dezessete anos, foi acometido por uma doença de nome impronunciável, que lhe devastou o fígado, transformando-o num órgão inútil, a exigir substituição imediata, sob pena de morte. Cruel, não é mesmo? Crudelíssimo, diria eu, para lembrar o agregado José Dias, das páginas machadianas, e também por ter sido testemunha da via sacra que ele percorreu desde o diagnóstico até o êxito do transplante.

Carregou uma cruz pesadíssima. É certo que o percurso não tinha como ponto final o Calvário. Mas o madeiro não teria sido suportado pelos ombros enfraquecidos do jovem se a seu lado não tivesse estado sempre, indormida, incansável, tenaz e resoluta a figura da professora Mônica Dias, a mãe extremosa, que se agigantou no infortúnio, mergulhou fundo na dor, dela extraindo, numa simbiose perfeita e inexplicável, a força e a coragem com que enfrentou o martírio do filho. Foram meses infindáveis, durante os quais os acontecimentos se sucederam numa sequência horripilante, capaz de ombrear com os frutos da imaginação kafkiana.

O transplante era inevitável e, portanto, a primeira providência era a entrada na fila de receptores em potencial, à espera de que o acaso determinasse se e quando ocorreria a cirurgia. São Paulo foi a opção natural, com o seu galardão de posto avançado da medicina brasileira. A lista de espera era imensa e, nesses casos específicos, uma ironia amarga se faz presente: quanto mais grave é o estado do paciente, melhor para ele porque ganha pontos para classificação entre as prioridades.

“É possível fazer o transplante no Acre”, anunciam os médicos, acrescentando que, relativamente, no vizinho Estado talvez fosse até mais fácil chegar ao momento adequado. Para lá se mandam Mônica e o rebento. Em retrospectiva, parece que ocorreu uma simples viagem. Ledo engano! Não sendo milionária a professora, e divorciada, dá para vislumbrar que a questão financeira começava a deixar sua marca forte na trilha a ser vencida. Mônica teve que abandonar o cargo de coordenadora do curso de direito que exercia com proficiência numa faculdade particular. Foi obrigada a pedir licença na Universidade Federal do Amazonas, onde leciona direito penal. Mas, embalada pela solidariedade dos amigos e pela ajuda financeira de parentes, foi à luta, aguerrida e com destemor.

O banco de dados nacional indica que surgiu o fígado perfeito para o caso do Isan. Condições climáticas fizeram com que o avião não chegasse a tempo à capital acreana e o órgão se deteriorou. Que merda! “Em Recife, há possibilidade de ser feita a operação”, é o novo anúncio da equipe médica. Mãe e filho partem para lá. À altura de Fortaleza, Isan tem uma crise severa no avião, sendo obrigado a desembarcar e se hospitalizar na capital cearense.

Foi quando vislumbraram a hipótese de uma solução intermediária: estando difícil a obtenção de um fígado inteiro, o pai do garoto poderia doar parte do seu, desde que estabelecida a compatibilidade. É que, explicaram os doutores, o fígado tem a capacidade de se regenerar, de tal sorte que, recebendo uma parte sã, o moço voltaria ao normal. Disso se cuidou e lá se foram todos novamente para São Paulo. Marcada a cirurgia, pai e filho são levados para a sala de operação e devidamente anestesiados. Outra decepção: os médicos foram obrigados a fechar o abdômen do pai, sem dele nada retirar, porque, ao vivo constataram uma incompatibilidade impossível de ser detectada através dos exames pré-operatórios.

Finalmente, nesta semana que termina, Isan recebeu fígado novo, em Rio Branco, no Acre. Vi sua foto já na sala de recuperação. Magro, a tez pálida, de seu corpo emergem tubos e fios às dezenas, como que simbolizando a quantidade de agruras por que passou. E Mônica a seu lado. Sorrindo, é claro. Sorrindo para compensar o oceano de lágrimas que derramou, ela, que no auge do sofrimento, chegou a confidenciar às amigas que estava querendo morrer. Viveu e vai continuar vivendo como exemplo verdadeiro de mãe. Disse o poeta que “ser mãe é padecer no paraíso”. Mônica sempre esteve muito longe do paraíso. Mas padeceu. Padeceu como só podem fazer os fortes, os destemidos, os que amam sem esperar compensação para o amor que entregam. Vive para desfrutar da nossa admiração e do nosso respeito. Vive para ouvir o que proclamo, compartilhando de sua alegria na vitória: Ave, Mônica! Os filhos de todo o mundo te saúdam.

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