
O Ministério Público do Amazonas (MPAM) solicitou à Justiça que uma mulher indígena da etnia Kokama, de 29 anos, vítima de estupros durante nove meses de custódia na 53ª Delegacia de Santo Antônio do Içá, interior do estado, passe a cumprir sua pena fora do sistema prisional, com o uso de tornozeleira eletrônica. A medida é uma tentativa de garantir condições mínimas de dignidade e segurança à mulher, que hoje está custodiada na Cadeia Pública Feminina de Manaus.
Condenada por homicídio ocorrido em 2018, crime que ela nega ter cometido, a indígena foi presa em novembro de 2022, após comparecer à delegacia para denunciar um caso de violência doméstica. Ao descobrir que havia um mandado de prisão contra si, foi detida e permaneceu por nove meses em uma cela masculina — em total violação à Lei de Execuções Penais — junto com seu filho recém-nascido, então com apenas 20 dias de vida.
Segundo depoimento prestado à Defensoria Pública, os estupros eram praticados por ao menos quatro policiais militares e um guarda municipal. Os abusos ocorriam principalmente à noite, em salas da delegacia, e frequentemente na presença do bebê. A indígena contou ainda que era forçada a consumir álcool com os agentes e foi violentada já na primeira noite de prisão. Os crimes só foram denunciados após sua transferência, em agosto de 2023, para uma unidade feminina em Manaus.
O defensor público Theo Costa afirmou que o exame pericial foi conclusivo, apontando conjunção carnal forçada e escoriações compatíveis com violência sexual. A defesa da vítima classificou sua condição na delegacia como “escravidão sexual”.
O caso está sendo investigado pelo Ministério Público, que instaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) para apurar os abusos. O processo está sob responsabilidade do promotor Reinaldo Alberto Nery de Lima, do Gabinete de Assuntos Jurídicos Criminal (GAJ-Crime), que poderá requisitar documentos, depoimentos e provas para responsabilização dos envolvidos.
Os cinco suspeitos foram identificados e afastados das funções, mas permanecem em liberdade. Um inquérito policial militar conduzido pela PM está em fase final de apuração, enquanto a Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM) também instauraram procedimentos internos.
A procuradora-geral de Justiça, Leda Mara Albuquerque, que esteve com a vítima em Manaus, afirmou que o caso escancara a precariedade do sistema prisional no interior e exige resposta firme do Estado. “Não podemos mais aceitar que mulheres sejam custodiadas em condições tão degradantes. O que essa mulher enfrentou é inaceitável — como promotora, como mulher e como cidadã, não podemos silenciar”, declarou.
Paralelamente às investigações, o MPAM também desenvolve ações de apoio psicossocial à vítima e sua família, por meio do Núcleo de Apoio às Vítimas e Vulneráveis (Naviv/Recomeçar) e do Centro de Apoio Operacional de Combate ao Crime Organizado (Cao-Crimo). Uma equipe multidisciplinar com psicólogos, assistentes sociais e operadores do direito foi enviada a Santo Antônio do Içá para prestar acolhimento e garantir acesso a políticas públicas de proteção.
A Justiça ainda não analisou o pedido para que a indígena passe a cumprir a pena com monitoramento eletrônico. Enquanto isso, a denúncia de violência sexual cometida por agentes públicos durante o período de custódia segue sendo um dos casos mais graves de violação de direitos humanos no sistema carcerário amazonense.










