Eu tenho um colega de trabalho escolar que não gosta de Carnaval. Outro dia, ele disse na sala dos professores, em alto e bom som, para que todos ouvissem:
— Carnaval é festa pagã, só traz coisas ruins, bebedeira, prostituição, destruição familiar… e um montão de palavras depreciativas sobre o Carnaval que eu não vou aqui reproduzi-las.
Acontece que um outro colega, também professor, mas amante da arte de brincar Carnaval, protestou:
— Querido professor, eu vejo que o senhor está completamente enganado. Está provado que brincar Carnaval torna as pessoas mais alegres, otimistas, felizes…
— Isso é balela, coisa de gente depravada, que não tem nada o que fazer na vida…
— Professor, não diga besteira! Carnaval é alegria, arte, cultura… O senhor sabe quantos empregos diretos e indiretos o Carnaval gera só na cidade de Manaus?
— Besteira rapaz! O Carnaval só traz prejuízos para os cofres públicos! Você já viu quantos acidentes ocorrem nesse período? Quantas mortes? Eu preferiria que todo esse povo estivesse na igreja, orando, mas não, estão aí cometendo pecado!
— Dentro das igrejas, dos templos, é que se cometem os piores pecados, professor! Veja bem, eu não sou crente, nem frequento igreja, mas respeito quem frequenta, coisa que o senhor não faz. Para o senhor tudo é pecado! Ser feliz é pecado, amar é pecado, pular carnaval é pecado…
— O senhor sabe, quem não é de Deus é do diabo. Jesus é bem claro: “Quem não está comigo, está contra mim; e aquele que comigo não colhe, espalha.” (Mt.12:30)
— O senhor precisa estudar hermenêutica para interpretar melhor a Bíblia! Enfim professor, eu não gosto da forma como o senhor fala de Deus.
— O problema é seu!
— Eu gosto da forma como Nietzsche fala de Deus: Diz ele: “Não posso acreditar num Deus que quer ser louvado o tempo todo”; e mais ainda: “Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar”.
— Eu já lhe disse: o problema é seu!
— O senhor fala de um Deus da Morte e o filósofo fala de um Deus da Vida…
— Eu só te digo uma coisa colega: se arrependa dos teus pecados enquanto há tempo… Deus está voltando… Pare de frequentar esses lugares profanos, volte para à igreja…
— O senhor vive falando que é um homem religioso, que não gosta de Carnaval, mas vive com a cara fechada, de mau-humor, irritado, parece até que têm uma úlcera que lhe rói por dentro…
Um princípio de confusão se formou. O professor que não gostava de Carnaval partiu para cima do professor que gostava de Carnaval. Se não fosse a turma do “deixa disso” os professores teriam se atracado ali mesmo!
— Escute aqui seu professorzinho de meia-tigela. Jesus está voltando e quando Ele voltar não vai levar os impuros, os pecadores…
— Quando Jesus voltar eu quero que Ele me encontre na avenida, sambando, feliz da vida…
Os xingamentos pessoas continuavam – um falava mal da vida do outro, da religião do outro, da preferência sexual do outro, da ideologia partidária do outro, da forma de comportar-se do outro – até que a gestora da escola entrou na sala dos professores.
— Vamos parar com essa discussão inútil. Acho que aqui não tem nenhuma criança, ou tem? – falou com voz firme e decidida.
— Quem começou foi ele… disse o professor que gostava de Carnaval.
— Eu não quero saber quem começou. Quero que cessem imediatamente essa discussão.
Enquanto a gestora falava, a pedagoga da escola pediu a palavra: — Passamos por um momento tão difícil no país, por tantas discursões bobas que não levam a lugar nenhuma; aliás, levam sim, à destruição do clima organizacional, das amizades, da divisão familiar…
E pondo um ponto final naquela discussão, a gestora retomou a palavra: — Não importa se você é crente ou ateu, se você gosta ou não de Carnaval, se você é de Direita ou de Esquerda, o respeito deve prevalecer. E depois de fazer uma breve pausa, ela continuou:
— Sabemos que nesse período a fantasia e a realidade se misturam numa grande folia que celebra a vida, a arte, a cultura e a diversidade. E é isso que desejamos para cada um de vocês e seus familiares: curta a seu modo o Carnaval, uma das festas mais populares do mundo.
E a pedagoga da escola, retomando novamente a palavra, finalizou: — Meus queridos professores, peguem o ritmo da felicidade, relaxem e curtam o Carnaval; afinal, o que importa nessa vida é sermos felizes, mas atenção! Não esqueçam do pós-Carnaval, à COVID está aí, e a vida precisa, merece e deve continuar.
*Luís Lemos é professor, filósofo e escritor, autor, entre outras obras de, Filhos da Quarentena: A esperança de viver novamente, Editora Viseu, 2021. https://www.editoraviseu.com.br/filhos-da-quarentena-prod.html?___SID=U
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