Os acontecimentos da nossa vida, as coisas que nos afetam, o trabalho ou a falta dele, a fome, a doença, a boa ou a má-sorte, tudo, mas tudo mesmo, é fruto do nosso agir, aconselhava padre Matheus. Padre, nós já não nascemos com o nosso destino traçado, por exemplo, com o dia que vamos morrer, com quem vamos casar, se vamos ser feliz ou não, se vamos ter dinheiro ou se vamos comer o pão que o diabo amassou?  

Nenhuma coisa e nem outra, filho! Todo ser humano carrega dentro de si o livre-arbítrio. Podemos ser o que quisermos ser. Podemos ser livres ou escravos. Bons ou maus. Podemos ser felizes ou infelizes. Verdade, padre? Sim, filho! Então eu posso ser Jesus Cristo? Jesus Cristo você não pode ser. Por que eu não posso, padre? O senhor não disse que podemos ser o que quisermos ser? Verdade filho, eu disse isso, mas Jesus tu não pode ser. Mas por que, padre, que eu não posso ser Jesus Cristo? Porque ninguém nasce duas vezes, filho! Porque o vegetal não pode ser mineral e o mineral não pode ser animal. Cada um tem a sua sina, a sua missão. Você pode segui-Lo. Você pode copiá-Lo. Você pode imitá-Lo. Mas nunca ser Ele. Assim como ninguém pode ser você. Nunca e ninguém pode ser Jesus. Jesus é Jesus, e ponto final. 

É uma pena o senhor me dizer isso, pois eu sempre quis ser Jesus Cristo. Padre, quando eu era pequenino, quando eu estudava o catecismo, a minha professora me disse que quando as pessoas boas morrem vão para o céu, e que o céu é um lugar lindo, calmo, tranquilo, cheio de flores e de gente feliz. E ela estava certíssima, filho! O céu é desse jeitinho. No entanto, ela se esqueceu de falar do outro lado, do destino final das pessoas ruins. Pessoas más, quando morrem, vão para o inferno, que é um lugar terrível, onde ficam os pecadores, os assassinos, os estupradores, os idolatras. 

De qualquer modo, padre, eu fico aqui pensando: o que leva uma pessoa a cometer um pecado se, de antemão, essa pessoa sabe que será condenada por isso? Filho, eu tenho a mais absoluta certeza que é o vício, a ganância pelo poder, o desejo de sucesso a qualquer custo, enfim, um punhado de atos imorais e antiéticos que levam as pessoas a cometerem os seus piores erros, os seus piores pecados. Padre, qual é o antídoto para todos esses casos? Ou, o que leva a remissão dos pecados? Existe uma saída? Claro, filho! O amor. Somente o amor. Santo Agostinho, bispo de Hipona, dizia: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”. Quer dizer, então, que o amor salva? Isso mesmo. O amor salva. O amor não só salva como…  

Padre Matheus nem chegou a completar a frase, quando ouviu um forte barulho que vinha do lado de fora da igreja. Alguém havia entrado na sacristia, ele pensou. Pulou do confessionário com a bíblia em punho, e viu à sua frente um vulto, que ele pensou ser do sacristão, iluminado pela claridade das velas, que enchiam os corredores da igreja, padre Matheus continuou caminhando. John?  É você? O que você faz aqui essa hora? Aconteceu alguma coisa? O vulto, que não era do sacristão e nem possuía forma humana, arreganhou os dentes e num sorriso satânico, respondeu ao padre Matheus: “Eu sabia que o senhor é um farsante, que o senhor é um padre comunista”. Não sei do que está falando, o padre Matheus retrucou. “Estou aqui para desafiá-lo pela posse da verdade”. Claro que está, ironizou o padre Matheus. “Eu sou a verdade. Eu represento o verdadeiro cristo”. É sempre a mesma conversa. A mentira é sempre mais sedutora. Você se apresenta sempre como dona da verdade. Mas não passa de uma velha feia, desdentada e muito má. Saí daqui sua besta…  

Nesse instante os confrades do padre Matheus chegaram. Alguém tentou dizer alguma coisa, mas não encontraram palavras. O sacristão John, que era chegado à meditação transcendental, pediu que todos dessem as mãos e que formassem uma corrente de energia positiva. Todos olharam sério para o sacristão, como se tivessem um pensamento em comum: “De onde ele tirou essa ideia?” Como ninguém tinha uma sugestão melhor, o silêncio tomou conta da igreja e o padre Matheus voltou atender as confissões! 

Luís Lemos é filósofo, professor universitário e escritor, autor, entre outras obras, de Filhos da Quarentena: A esperança de viver novamente, Editora Viseu, 2021.  

Escreva-se no meu canal no Youtube, é grátis: https://m.youtube.com/channel/UC94twozt0uRyw9o63PUpJHg 

Artigo anteriorCentro universitário promove campanha para arrecadar alimentos em Manaus
Próximo artigoDia Nacional de Combate ao Colesterol: doenças cardiovasculares são líderes de mortalidade no Brasil