Na idade em que me encontro, poucas coisas existem com a capacidade de me causar espanto. Foram tantos os espetáculos proporcionados pela vida que uma espécie de crosta ameniza qualquer impacto sentimental. Amigos e parentes se vão. As saudades tendem a se sobrepor às alegrias. Por isso, talvez, dizem que os velhos temos experiência, quase como uma compensação para o pouco tempo que nos resta. Paciência. Impossível mudar o curso do relógio.

Ora, mas se é verdade que olhamos sobranceiros para os acontecimentos, tenho de confessar uma brutal exceção: até agora não consegui entender o pouco caso, quase desprezo, com que o povo brasileiro reagiu à notícia da tramoia golpista. Pareceu assim que estávamos diante de uma trivialidade, de uma realidade do cotidiano, tão insignificante a ponto de não merecer maior consideração.

Que que é isso, minha gente? Uma quadrilha altamente sofisticada, cheia de recursos financeiros, iniciou a execução de um plano macabro para pôr fim à democracia no país. Esse objetivo haveria de ser conseguido quaisquer que fossem os meios a serem empregados, derrubando-se os obstáculos a ferro e fogo. Basta ver que o passo inicial do bando armado seria a morte sumária do presidente e do vice-presidente da República, assim como o sequestro de um ministro da Suprema Corte.

Pode haver coisa mais grave do que isso, no quadro de um estado democrático de direito? É difícil imaginar. No entanto, não vi nenhuma mobilização dos movimentos progressistas para levar o povo às ruas e exigir da punição exemplar dos golpistas. As vozes da racionalidade não se ergueram, o que veio a ensejar um absurdo: o comandante do golpe, o abominável, usa os meios de comunicação para dizer “alguém tem que ceder” e que esse alguém é o ministro Alexandre de Moraes.

Dá para dimensionar a intensidade dessa vilania? O moleque arma o golpe, contrata “juristas” de beira de igarapé para darem formatação ao crime, discute estratégias e logística, e, depois pede que os tribunais deixem de aplicar a lei! Porque, na essência, foi precisamente isso que ele fez. Advertiu: recuem e nem pensem em punir a mim e aos meus comparsas golpistas.

Diante dessa atitude abúlica que vem sendo adotada, acho importante ponderar: está completamente enganado quem pensa que a ameaça de golpe foi afastada. Enquanto essa canalha, militar e civil, não estiver cumprindo pena criminal, o fantasma do golpe estará sempre pairando sobre nós. Afinal de contas, em 64 eles torturaram e mataram e, depois, recebem uma anistia. Acostumaram-se com a impunidade e acham que podem se safar novamente, sem nenhum arranhão cívico. Isso não deve e nem pode acontecer. Os militares têm que aprender de uma vez por todas que não estão acima do bem e do mal e que nenhuma força divina lhes outorgou poder de tutela sobre a sociedade. Devem se enquadrar nos limites traçados pela Constituição, dentro da qual, por óbvio, não se encontra nenhum dispositivo que consinta a alguém atentar contra a própria Carta. É simples: o arcabouço do estado democrático de direito não pode ser objeto de ataque. De ninguém.

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