No dia em que completei oitenta, Catarina Bianca, a caçula das netas então com seis, me disse com cativante ternura: “Vovô, você está bem velhinho”. Não sei o que a Pequerrucha dirá hoje. Talvez eu seja promovido a “velhinho plus”. Estará de acordo com a linguagem da informática, que ela já domina. É que dois anos se passaram e cá estou eu, em outro 21 de março, fincando mais um marco temporal na trilha que conduz ao nada. Paciência. É o destino comum de todos os seres viventes: no fim, o mergulho no nada absoluto, sem luzes e sem trombetas angelicais; mas, também, sem fogo. Como tenho mais tempo de caminho andado do que aquele que me resta percorrer, não custa nada dar uma olhada para o passado e ver se valeu a pena.

Cresci como todos os meninos da minha época: obrigatoriamente católico, a acreditar em tudo o que rezava o catecismo. Desde o sopro no barro até o destino das almas que, de resto, só serviam para  fazer assombração. Até coroinha fui, ainda no tempo em que se dizia a missa em latim. A consequência era um dialeto incompreensível, tanto da parte dos padres como de seus acólitos. Como ninguém entendia a missa, não sei até hoje como tanta gente ia assistir a ela. Mas ia. As igrejas estavam sempre cheias. Ainda não era a época em que evangélicos, arrebanhados por macedos e malafaias, se comprazem em destilar palavras de ódio, à procura, talvez, da eclosão de uma guerra santa.

Aos quinze, perdi meu pai. Foi o golpe mais inclemente já sofrido. A ausência do professor Valois, aquele homem doce, culto e humilde, paciente mas assertivo, é uma lacuna que perdura por todas as décadas desde então. Mas pude ver a fibra de dona Lucíola, que privada do companheiro, foi à luta com destemor pela sobrevivência própria e dos sete da prole.

Já na faculdade de direito, a abertura dos olhos para o mundo e a compreensão de que ser universal é indispensável. O marxismo-leninismo me mostra as entranhas das cruéis e ferozes desigualdades e injustiças que estão nas raízes mesmas de um sistema voltado exclusivamente para os ganhos financeiros da minoria dominante. Desde então, não houve momento em que deixasse de sonhar com todas as crianças na escola, com homens e mulheres ganhando o que efetivamente merecem por seus trabalhos. A fome e a miséria seriam apenas tristes lembranças históricas e as guerras (ah, as guerras!) existiriam apenas na tresloucada imaginação de psicopatas.

Na advocacia, profissão que exerço há sessenta anos, jamais neguei assistência aos necessitados e, na tribuna do júri, onde passei o maior tempo, tive sempre a consciência de que a figura do defensor é a única muralha a se interpor entre o poder do estado e aqueles que são engolfados pelo sistema jurídico-penal. É insana a luta para obter, pelo menos, a paridade de armas entre as partes em conflito. As dificuldades se enfileiram e passam a exigir resiliência e dedicação extraordinária.

Tinha eu acabado de atingir os vinte e um anos, quando vi meu país e minha gente serem abocanhados por cruenta ditadura militar. As duas décadas e meia subsequentes ao 1º de abril foram vividas com total carência de oxigênio cívico. Pessoas sumiam no ar. Prisões a mancheias, permeadas pela disseminada presença da tortura física e psicológica, praticada nos horrendos porões dos doi-codis e de estabelecimentos militares. Essa mesma tortura que, por incrível que pareça, ainda hoje é endeusada por energúmenos aos quais falta o mínimo senso de pudor. Chegou o “amanhã”, o “outro dia”, sonhado por Chico Buarque. O “galo insistiu em cantar” e o “nosso povo pôde cantar, de repente, alegremente”. O que não impediu que, passados anos, o fascismo recobrasse forças e tentasse minar as bases do estado democrático de direito. Está sendo rechaçado.

Formado, juntei-me com a companheira que até hoje está comigo. Nas “Memórias Póstumas”, Machado de Assis põe na boca de Brás Cubas o que ele chama de “negativa das negativas”: “Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Até os gênios podem estar em equívoco! Se o Bruxo do Cosme Velho viesse a conhecer os quatro filhos que geramos, por certo colocaria um freio no seu pessimismo. Amáveis, dóceis, adoráveis mesmo, Luís Carlos, Lucíola, Alfredo e Lúcia são o que de melhor consegui obter da vida. Não sei o que seria sem eles.

Vieram os netos. Que universo diferente! Eles mandam e desmandam. Ditam regras e são implacáveis, mas não é possível deixar de rir com eles, com eles se misturar, compartilhando alegrias e jocosidades que surgem como maravilhas paranormais aos olhos de avós totalmente obcecados. Vamos ver como vai ser com o bisneto que acabou de chegar. Dose dupla, talvez.

E assim vim eu caminhando. Velho ou velhinho, continuo comunista. Não me pesa na consciência o cometimento de alguma injustiça. Também, nunca furtei joias. Já vi a partida de muitos amigos. É uma saudade muito dolorosa. Quando a ceifeira decidi me colher, estarei pronto. Então, cairão das minhas mãos a foice e o martelo, símbolos com que sempre combati as desigualdades. Diante delas, o nada há de ser até acolhedor.

Enquanto isso, “ainda estou aqui”.

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