Conheça hoje a instigante trajetória de vida do filósofo Harald Pinheiro, doutor pela PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“Olá, me chamo Harald Sá Peixoto Pinheiro, atualmente com 57 anos, nascido no bairro da cachoeirinha e uma infância marcada pela curiosidade aguçada, pelo olhar distante e pela escuta atenta a tudo que me rodeava. Tanto o visível como o audível surgiam emoldurados de signos a serem decifrados. A imaginação e a intuição inventiva da infância ocupavam o lugar que seria determinado pela filosofia anos mais tarde.
Na dimensão do visível e invisível não foram poucas as vezes que me surpreendia solitário na janela de casa admirando na rua as crianças e jovens em suas brincadeiras com linhas de cerol e coloridos papagaios no céu em acrobacias que me levavam ao fascínio. Nunca me entristeceu o fato de não puder experienciar in loco esses divertimentos por zelo e cuidados de meus pais, porque ao meu modo o olhar entusiasmado desse presente-ausente, perto-distante me fazia vivenciar cada sobressalto, cada grito, choro, cada riso e brigas de meninos como se eu estive ali com eles, na ebulição das ruas, em meio a queda de uns papagaios que sobrevoavam telhados e quintais. À semelhança de um corpo fantasma que, embora amputado, ainda assim fazia exercitar na memória e na imaginação afetos reais que se manifestam enraizados no corpo de uma criança. A infância já contém toda a semeadura do pensamento filosófico de onde as peripécias do brincar e imaginar já configuram uma aventura do Pensar e do Ser, o leitmotiv a Filosofia.
A dimensão do audível, da escuta curiosa exerceu sobre mim uma segunda experiência do fascínio e da perplexidade, mais atiçada a partir da adolescência e início da vida adulta. Certamente essa curiosidade epistêmica foi determinante na trajetória de minha formação acadêmica e profissional como professor de filosofia e pesquisador das coisas da Amazônia profunda, sempre entrelaçada por forças que agem simultâneas entre o real, o simbólico e o imaginário, recorrendo aqui a tópica lacaniana que foi determinante para meus estudos que versam pela tríade Ciência, Filosofia e Psicanálise.
A experiência da escuta me conduziu por mais de uma dezena de vezes ao labirinto da biblioteca de meu pai onde ele costumava receber inúmeros pesquisadores de importantes universidades do país e do mundo. Geógrafos, antropólogos, escritores, poetas, botânicos, intelectuais e tantos outros produziam narrativas em meio a conversas que serviam como um portal para acessar o desconhecido. Numa atmosfera de livros, encontros, encantos e curiosidades das pesquisas percorrendo o labirinto da alteridade e do mistério pude compartilhar secretamente, escondido entre inúmeras estantes e escrivaninhas, a escuta de problemas locais e globais, confidências e acontecimentos de cadernos de campo, conexões que sugeriam um pensamento totalizante, como se tivéssemos que montar um quebra-cabeça.
A influência desse ambiente epistêmico em minha pesquisa e formação tem um elemento mágico marcante, de caráter estético-afetivo e cognitivo: antes de dormir meus pais costumavam contar estórias de seres encantados e misteriosos da Amazônia. Essas estórias eram narradas sob uma atmosfera psicológica e filosófica: a primeira, porque comportava uma seleta tensão emocional, um misto de medo e curiosidade, fascínio e perplexidade, ou como sugeriu Aristóteles na Poética, uma relação que ia do “Terror à Piedade”; a segunda, porque nunca soube ao certo se eram narrativas verdadeiras, mentirosas ou simplesmente verossímeis.
A biblioteca tornou-se mais que um espaço onde se armazenam livros, pois, entre seus corredores, móveis e estantes de tamanhos e formatos desconexos tornava-se cada vez mais um espaço lúdico e mágico de recreação e prazer: quando meu pai não estava em casa ou quando estava dormindo era um lugar privilegiado de esconderijos e arruaças de menino. Em meio a livros e estórias um mundo reencantado era desenhado em minha mente, sob o signo de uma razão imaginativa, delicadamente construído em silêncio, no anonimato e, por vezes, até na clandestinidade.
Venho me dedicando a Filosofia e seu estudo desde o ingresso na UFAM, no curso de Filosofia, no ano de 1987. Sempre me via curioso e assustado como o mundo se revelava a minha frente. A timidez somada a uma dose de melancolia e solidão, mais particularmente o sentimento de “solitude” de quem aproveita e se nutre do estado positivo de estar sozinho e ser sozinho, desde jovem já me perseguia e me inquietava. Hoje percebo que são predisposições subjetivas imprescindíveis para uma vida filosofante. Nesse sentido associo essa condição da filosofia a uma tarefa ou um exercício mais íntimo do pensamento na sua natureza errante, inclinada muito mais as indagações e aos estímulos de perplexidade diante da vida. Sua natureza misteriosa, por vezes enigmáticas para a qual as respostas mais fundamentadas e rigorosas, deixam sempre novos abismos a serem investigados.
Em decorrência dessa condição marcadamente existencialista (agnóstica) minhas inclinações seguiram os primeiros passos nas leituras de Martim Heidegger, Gabriel Marcel, Paul Ricoeur e Albert Camus. Nietzsche também exerceu um fascínio sobre meu pensamento. Concluí minha graduação logo no início de 1993. Dá muitas outras formações se complementaram: Filosofia Clínica, especialização em Ética, mestrado em Educação, mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia e meu doutoramento pela PUC de SP, em 2013, na área de Antropologia. A vida profissional e pessoal foi marcada pela filosofia e o risco constante desse ofício, pela sua criticidade e pela sua forma de “dizer a verdade ao poder”, como sugeriu Edward Said. Mas a Filosofia foi sobretudo marcada como dimensão trágica e como absurdo, o que me levaram a leituras complementares com a arte, a literatura e os mitos, inclusive amazônicos.
Por conta desse entusiasmo filosófico com a existência em forma de estética e ficção egóica produzi uma tese sobre a Mitopoética dos Mitos Amazônicos, publicada em 2021 pela EDUA. Comecei desde cedo minha formação no ensino de filosofia, ainda como acadêmico na década de 80. Depois obtive muitas experiências docentes em Faculdades Particulares. Em 2005 pude ser aprovado em dois Concursos Públicos que entrelaçam atividades da docência superior na Filosofia.
Optei pelo ensino de Filosofia da Educação, na FACED-UFAM. Hoje, a pesquisa complementa o ofício do ensino e tenho a satisfação de compor vários núcleos de pesquisa em Filosofia e, principalmente ser membro do Curso de Pós–Graduação (Mestrado) em Filosofia, trabalhando com mestrandos vindos da Rede Pública de Ensino, como professores da SEDUC. Certamente a Filosofia mudou minha vida e dela faço valer a pena a inutilidade do que é verdadeiramente útil a toda existência que busca fazer do pensamento uma tarefa, um propósito, um desafio.
Atualmente me encontro dedicado às questões clínicas, filosóficas e sociológicas marcadas pela crueldade do mundo do trabalho que tem levado muitos professores ao adoecimento, ao sofrimento físico e psíquico. Tenho me dedicado aos estudos de filósofos, psicanalistas e psiquiatras que sinalizam para uma acelerada gestão do adoecimento. Ambientes carregados de assédio moral, truculências e de investidas do neoliberalismo perverso, sabotando o tempo do ócio, do pensamento e do lúdico, elementos essenciais ao processo de uma humanização integral”.
Luís Lemos é professor, filósofo, escritor, autor, entre outras obras de, O primeiro olhar A filosofia em contos amazônicos (2011), O homem religioso A jornada do ser humano em busca de Deus (2016), Jesus e Ajuricaba na terra das amazonas Histórias do universo amazônico (2019), Filhos da quarentena A esperança de viver novamente (2021), Amores que transformam (2024).
Instagram: @luislemosescritor