A investigação sobre um suposto esquema de lavagem de dinheiro de jogo ilegal por meio de casas de apostas, que teve entre os alvos a influenciadora digital Deolane Bezerra e o cantor Gusttavo Lima, virou uma crise entre delegados, promotores de Justiça e a juíza que cuida do caso, em Pernambuco. Os suspeitos negam envolvimento com esquemas ilegais.
Há uma divergência sobre teses jurídicas que devem ser adotadas contra os investigados e, ainda, uma troca de acusações sobre falta de profissionalismo e isenção de parte a parte. A Operação Integration, deflagrada em setembro, resultou em 22 indiciamentos, mas ainda não houve oferta formal de denúncia criminal ao Judiciário. Não há previsão sobre o início de uma ação penal.
O principal desentendimento gira em torno da investigação sobre os supostos envolvimentos do cantor Gusttavo Lima e da Vaidebet, empresa paraibana que chegou a anunciar patrocínio ao Corinthians, mas rescindiu o contrato.
Para o Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a mera exploração de jogos de azar ou de apostas esportivas não é um crime antecedente necessário para se acusar alguém de lavar dinheiro ilícito. Isso porque, no entendimento dos promotores, as leis 13.755/2018 e 14.709/2023 legalizaram e regulamentaram a atividade de apostas online.
Eles entendem que a única maneira de apontar a lavagem de capitais é demonstrando a mistura entre dinheiro proveniente do jogo do bicho, uma contravenção penal, e as casas de apostas. Segundo os integrantes do Gaeco, a investigação da Polícia Civil de Pernambuco não traz esses elementos com relação a Gusttavo Lima ou a Vaidebet, e por isso não haveria motivos para essa parte da investigação prosseguir.
“Com uma lei de 2018 e outra de 2023, o legislador aboliu o ilícito penal que havia com relação a essas condutas, de jogos eletrônicos feito pelas bets. Para a polícia, enquanto não regulamentar, continua sendo contravenção penal. Para nós, hoje, não podemos mais imputar contravenção penal para pessoas que exploram as bets”, afirmou o promotor Roberto Brayner, coordenador do Gaeco.
“Não podemos considerar a movimentação bancária decorrentes dessas duas modalidades (aposta esportiva e jogo de azar, como do tigrinho), como uma infração antecedente que daria ensejo à lavagem de dinheiro. Pode haver outros crimes, como estelionato, evasão de divisas e sonegação fiscal? Sim, mas não foi por esse caminho que a investigação (da polícia) seguiu. Não houve levantamento de hipótese desses crimes”, emendou a promotora Katarina Gouveia.
O promotor acrescentou que, mesmo nos casos de demonstrada relação com dinheiro jogo do bicho, só devem ser processados aqueles que tinham ciência de que os recursos recebidos estavam ligados à atividade irregular. “Para além da questão objetiva, de demonstrar que o recurso do bicho foi lavado pela atividade da bet, tem o desafio de demonstrar a parte subjetiva, que é o dolo. A pessoa sabia que aquele dinheiro movimentado estava misturado, tinha recursos do bicho? É importante deixar a investigação avançar para ver quem tem e não tem responsabilidade”, frisou.
Ao Estadão, ele admitiu que o entendimento esvazia o escopo inicial de suspeitas apuradas, mas pontuou que se trata de uma avaliação técnica. “É a regra”, comentou.
A ligação do jogo do bicho com empresa de apostas se daria somente nas operações da Esportes da Sorte, bet de Pernambuco que também é investigada. A empresa é patrocinadora de clubes da Série A do futebol brasileiro, como Corinthians, Bahia e Grêmio.
Procurada, a Vaidebet não comentou. A defesa da Esportes da Esporte considerou correto o entendimento do MPPE sobre o crime antecedente, mas argumentou que não há relação entre a casa de apostas e o jogo bicho no Recife.
A Polícia Civil discorda categoricamente do MPPE. Em nota ao Estadão, destacou que as leis de 2018 e 2023 “estabelecem que as empresas brasileiras serão autorizadas a funcionar no País a partir de 1º de janeiro de 2025 e, ainda assim, desde que tenham o aval da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda”. E que as empresas investigadas na operação “sempre funcionaram no Brasil e não no exterior, a despeito de alegação de que seriam sediadas em Curaçao”.
“Há indícios de que o retorno dos valores enviados ao exterior – que correspondem a ganhos dos sócios – vem por meio de empresas que ‘prestam’ atividade de publicidade e eventos dos sócios das empresas”, frisou. A nota acrescentou também que os fatos apontados no inquérito policial “configuraram, determinantemente contravenção penal de jogos de azar, infração penal antecedente – como a do jogo do bicho – à lavagem de capitais”.
O caso Gusttavo Lima
O principal vínculo de Gusttavo Lima com a Esportes da Sorte é uma operação de compra e venda de uma aeronave Cessna Aircraft, modelo 560XLS, por US$ 6 milhões. Há também repasses da intermediadora de pagamentos das casas de apostas investigadas para uma empresa do cantor. Nos dois casos, contudo, o MPPE entende que a polícia não demonstrou relação entre as transações e atividades ilícitas.
O cantor sertanejo chegou a ter a prisão decretada pela juíza Andréa Calado Cruz, da 12ª Vara Criminal do Recife. A decisão foi revogada antes mesmo de ser cumprida. Ele não estava na primeira lista da Polícia Civil, de 13 de setembro, de indiciados por crimes como lavagem de dinheiro e associação criminosa. Houve um aditamento (complemento) dois dias depois pra a inclusão do artista.
O complemento se deu com base em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontou repasses de R$ 5,9 milhões, em 2023, para a GSA, uma empresa do cantor. Os pagamentos foram feitos pela Vaidebet e pela Zelu, empresa que faz a intermediação de pagamentos para as duas casas de apostas investigadas. As transferências representaram 31% de tudo que a GSA recebeu no ano. “Há, portanto, indícios suficientes da participação dele no crime de lavagem de dinheiro que foi investigado no inquérito policial”, diz a polícia no aditamento, ao qual o Estadão teve acesso.
Sem vislumbrar dados concretos que justificassem o indiciamento contra o cantor e contra os responsáveis pela Vaidebet, os promotores pediram o arquivamento dessa parte da investigação. Além disso, opinou que as questões referentes à firma paraibana deveriam tramitar na comarca de Campina Grande (PB), onde está a sede da Vaidebet. A juíza Andréa Calado da Cruz negou o pedido.
Com o indeferimento, a situação deverá ser reexaminada pelo procurador-geral de Justiça de Pernambuco, Marco Antônio Matos de Carvalho. O chefe do MPPE poderá solicitar novas investigações, concordar com os promotores do Gaeco e arquivar a parte relacionada ao cantor sertanejo ou determinar a apresentação de uma denúncia formal contra ele.
Troca de acusações de “abuso” e de “inércia”
A crise entre os promotores e a juíza escalou na última semana depois que o Gaeco apresentou um pedido de correição parcial contra decisão da magistrada. Esse recurso é apresentado nos casos em que juízes de primeira instância cometem “erro”, “abuso” ou “tumultuam o processo”.
Para o Gaeco, a juíza cometeu “insultos”, “ofensas” e “insinuações” contra o MPPE, além de ter “faltado com a verdade” em decisões, em “atitude típica de quem aparenta paixão pela investigação e não consegue manter a distância e isenção indispensáveis ao ‘múnus’ público de julgar”.
A insatisfação do MPPE vinha há mais de um mês, com os promotores se queixando de não serem consultados para medidas como decretação de prisões e bloqueios de valores. Em paralelo, a juíza cobrava a oferta de denúncia ou arquivamento do feito em prazos considerados curtos.
Em decisão de 19 de novembro, ela escreveu que o Ministério Público “não pode repousar em inércia” e sugeriu que os promotores mudaram de postura quando Gusttavo Lima apareceu como indiciado. Andrea Calado da Cruz chegou a salientar que um dos pareceres dos promotores sobre o artista foi e “breve e carente de argumentos”.
Os promotores afirmam que ainda não fizeram denúncia porque aguardam a análise de informações fiscais e bancárias de investigados para terem elementos concretos. “Ao forçar o Ministério Público a analisar o caso sem a conclusão da quebra bancária, sua excelência pretende impor solução indevida, independentemente da linha que vier a ser adotada por este órgão”, diz o pedido de correição.
O estopim que levou os promotores a pedir a correição foi a medida tomada pela juíza no último dia 4. Ao negar o arquivamento solicitado ela destacou: “requer o Gaeco que este juízo se abstenha de deferir medidas cautelares requeridas pela autoridade policial. Nesse ponto, é fundamental que o Ministério Público assuma sua posição como instituição incumbida da função essencial à jurisdição, atuando como fiscal da ordem jurídica e promovendo a aplicação da lei. A autonomia do Poder Judiciário deve ser respeitada”, afirmou.
O pedido de correição, com possibilidade de abertura de procedimento disciplinar, deverá ser analisado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco. Procurado, o Judiciário pernambucano informou, por meio da assessoria de imprensa, que “seu compromisso constitucional é com a imparcialidade”. A juíza Andrea Calado da Cruz não comentou porque A juíza de direito Andrea Calado Cruz “apenas se manifesta nos autos, como tem feito desde o início”.