Fim de tarde em Manaus e o pai de família José estava sentado no último banco da Igreja de São Sebastião, fazendo suas orações para os parentes mortos na pandemia de Covid-19. Ele sempre ia naquela igreja e gostava de sentar sempre no mesmo lugar, no primeiro banco da igreja. “Aqui eu me sinto mais perto de Deus”, dizia. O ruim era que a igreja sempre ficava cheia, ainda mais numa quarta-feira de cinzas. “Não sei por que as pessoas vão para a igreja e ficam conversando, falando alto”. “Igreja é lugar de silêncio”. “Deveria ser proibido usar microfone, caixa de som, bateria – um horror – dentro das igrejas”, refletia.

José era amante do silêncio, da contemplação. Este gosto ele trouxe do mosteiro, onde viveu por oito anos como monge contemplativo. “Será que essas pessoas não entendem que a oração que agrada a Deus é o silêncio? Afinal, não foi Ele mesmo que disse: “Quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está em secreto. Então seu Pai, que vê em secreto, o recompensará. E, quando orarem, não fiquem sempre repetindo a mesma coisa, como fazem os hipócritas. Eles pensam que por muito falarem serão ouvidos. Não sejam iguais a eles, porque o seu Pai sabe do que vocês precisam, antes mesmo de o pedirem.” (Mt 6, 6-7)

Lá fora, na rua, o asfalto fervia, com o calor infernal que fazia. “Ou morreremos todos desse vírus ou do aquecimento global, infelizmente dessas duas pragas poucos escaparão”, pregava um pastor em tom messiânico, com a Bíblia na mão. No interior da igreja, José pensava: “É impossível conciliar desmatamento com clima saudável”. Foi quando um homem vestindo uma capa brilhante, parecendo um reizinho, entrou e sentou ao seu lado. Depois de fazer suas orações numa língua incompreensível, ele disse baixinho no ouvido de José: “Venha comigo”. José levantou-se e fazendo o sinal da cruz saiu seguindo aquele homem.

Depois de caminharem um pouco, José perguntou: “Para onde o senhor está me levando?”. “Vou te mostrar a verdade”. Ambos caminhavam em direção à praça. “Pronto, chegamos!”, disse! “Isto aqui é o Teatro Amazonas”, constatou José. “O que estamos fazendo aqui?”. “Fique calmo, e verás!”. Os fieis que antes estavam na igreja foram se chegando aos poucos até a praça ficar completamente lotada. Aquele homem pediu emprestado o microfone do pastor que pregava na praça e de cima de um palanque improvisado começou a discursar:

“Em pouco mais de dois anos de pandemia vocês sabem quantas pessoas já morreram no Brasil? E depois da criação da vacina quantas vidas já foram salvas? Tenho certeza que se o governo tivesse se apressado em comprar as vacinas muitas vidas teriam sido salvas. Muitos dos nossos parentes estariam aqui conosco hoje. Será que é justo o governo dizer que não tem nenhuma responsabilidade pelas mortes de nossos parentes? Será que a vida vale por si só ou existe vida melhor do que a outra? Por que a maioria dos mortos por esse maldito vírus foram de pobres? Digam-me: a vida de um homem pobre vale menos do que a vida de um homem rico? Respondam-me? Por que vocês se calam? Nós devemos defender a vida em todas as suas formas, seja a vida humana, animal ou vegetal. O importante é a vida. E quando se trata de vida humana, não importa a sua origem, a sua cor, a sua língua, a sua crença. O importante é a humanidade que deve existir dentro dos nossos corações e que deve permear todas as nossas ações. Não fiquem com raiva de mim, mas eu penso que é mais importante à humanidade do que a oração. O que adianta você viver orando, dentro da igreja, se você é fascista, racista, nazista, ou que defende quem defende a morte de crianças, mulheres e inocentes, não adianta de nada! Certamente quem age assim não sentará no trono de Yahweh, Jeová, Adonai, Krishna, Brahmā, Vishnu, Shiva, Mawu, Olorum, Zambi, ou em qualquer outro Deus que você acredita, no dia do juízo final”.

Enquanto aquele homem ia falando, José ficou pensando o quanto a morte estava ligada a sua vida ou se até ele mesmo estava vivo ou morto. Em pouco mais de seis meses, quatro pessoas ligadas a José tinham morrido e ele andava com a sensibilidade aguçada para tudo que desse respeito à morte. Na medida em que aquele homem ia falando, veio à memória de José a imagem dos cadáveres jogados nos contêineres frigoríficos em frente ao Hospital João Lúcio, no auge da pandemia, sem caixões, sem flores, sem mascaras que escondessem o desgosto de estarem mortos. Ainda mais que aquele homem se pareceria muito com o professor Nonato, seu colega de trabalho escolar e amigo íntimo.

O professor Nonato tinha saído de Manaus saudável e bem-disposto para passear em Presidente Figueiredo e teve um enfarte fulminante quando visitava a Cachoeira do Urubui. Voltou para Manaus embalado, dentro de um caixão. Só faltou a motocicleta e o hospital, quanto ao resto, tudo tinha sido igual ao professor Edmundo, que morreu da mesma maneira. Até o desprezo da viúva se repetia na mulher do professor Nonato, a Fátima, que vivia enfunada em casa, vestida de preto como uma viúva de antigamente. Você sabe qual foi à causa-morte de todos estes companheiros? Sim, o governo se apresou em dizer que fora de Covid-19.

A temperatura caiu bruscamente e o clima ficou agradável. “Agradeço aqui de coração – continuou aquele homem – a todos aqueles que colocarem estas minhas palavras em prática”.

José beliscou o seu braço para ver se tudo aquilo era real ou não, e quando voltou em si não viu mais aquele homem. Antes, porém, José ouviu as suas últimas palavras: “Não há muito que fazer pelos que já se foram. Apenas orem por eles. Não esqueçam as suas histórias de vida que certamente eles também não esquecerão vocês. Há muito que fazer por vocês, por quem está vivo. Amem-se mutualmente e façam sempre o bem porque assim vocês estarão cumprindo com a missão de vocês aqui na terra e quando chegar o dia da páscoa de vocês certamente os entes queridos de vocês ficarão felizes em recebê-los no céu”. “Que assim seja amém!”, disse José.

Luís Lemos é filósofo, professor, autor, entre outras obras, de “Jesus e Ajuricaba na Terra das Amazonas” e “Filhos da Quarentena”.

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