Felix Valois

No terrível ano de 1964, o golpe de Estado apresentou suas fauces horrendas logo no primeiro dia de abril. Estava implantada uma ditadura militar que infelicitou a Nação por mais de duas décadas, suprimindo direitos fundamentais, torturando alguns e matando outros, tudo em nome da preservação da “civilização ocidental e cristã” (seja lá o que isso for) que, aos olhos da CIA, estava ameaçada pelo “ouro de Moscou”, outro conceito de impossível definição. Os da minha geração éramos estudantes e estávamos, em grande maioria, na velha Faculdade de Direito da praça dos Remédios. Em maior ou menor escala, o braço da intolerância alcançou a veneranda escola. Amazonino Mendes, por exemplo, foi preso em um quartel do Exército aqui mesmo em Manaus. Para não ter o mesmo destino, Álvaro Gaia Nina se refugiou nas matas fechadas do que é hoje o bairro do Japiim. Ambos foram reprovados por faltas e só com o passar do tempo puderam voltar gradativamente às atividades normais. Insanidades de um regime tresloucado.

Pois bem, foi esse mesmo Álvaro Gaia Nina que me fez a sacanagem de morrer anteontem. Não tinha ele o direito de nos deixar os corações estraçalhados de saudades. Dizem que, quando morre um patriota, há congresso de condores nos céus da Pátria. Devem as aves estar reunidas agora, no azul do firmamento brasileiro, em homenagem àquele cuja voz sempre se ergueu em defesa da liberdade e da justiça social. Orador brilhante e impecável, ouvi muitas vezes Gaia Nina relembrar Castro Alves, proclamando que “a praça é do povo como o céu é do condor”. Com a ausência dele, a praça se esvazia temporariamente, mas não ficam os condores impedidos de reconhecer, em assembleia, que essa verdade não pode e não deve ser olvidada.

Até chego a entender hoje, na velhice e em retrospectiva, que a ditadura voltasse sua sanha contra Gaia. Eram, afinal, a manifestação perfeita do que representam tese e antítese. Lá, o ódio; aqui, a bondade. Na ditadura, tudo era encarceramento e violência. Em Gaia, pulsavam a liberdade e a paz. Não podiam mesmo se dar bem e tenho como certo que a perseguição sofrida por meu querido companheiro é medalha de mérito, reconhecedora de sua bravura indômita.

O discurso de Gaia Nina era como um látego a fustigar as costas de toda sorte de opressores. Sereno, mas implacável, esmiuçava com percuciência científica e invejável eloquência, as contradições do sistema, expondo-lhe as mazelas, a partir da demonstração de que a exploração das grandes massas pelo capital é mazela que pode e deve ser combatida. Vencer essa doença é tarefa hercúlea, mas, bradava o grande orador, não impossível, na medida em que todos estejam convencidos de que, através da união e da solidariedade, o povo sempre haverá de conquistar a realização de seus ideais. Sacrifícios haverá. E muitos. Porém, (parece que ainda ouço a voz do meu querido irmão, de novo relembrando o poeta baiano) “quem cai na luta com glória, tomba nos braços da História, no coração do Brasil”.

Assim foi, mesmo antes da ditadura, nos idos de 1962, quando um governo nitidamente fascista se instalou no Amazonas. Mera prévia do que enfrentaríamos dois anos mais tarde, esse tal governo perseguiu estudantes e trabalhadores, reprimindo com violência exacerbada qualquer manifestação popular que pudesse ser ensaiada nestes arraiais. Havia uma reunião na Casa do Trabalhador, ali na rua Marcílio Dias. A polícia cercara todo o quarteirão, exibindo armas pesadas, com o propósito óbvio de intimidação. Nesse cenário bélico, o próprio títere se apresenta ao vivo e a cores no recinto. Pernóstico e prepotente, impôs sua presença, respaldado pela proteção de beleguins truculentos, se me permitem a redundância. Discursou, ameaçando a tudo e a todos. Foi como água fria na fervura e parecia que, definitivamente, os objetivos do encontro seriam frustrados. Eis senão quando, do meio da massa, ergue-se um jovem. Era moreno e franzino, com biótipo indígena. Era Álvaro Gaia Nina. Microfone em punho, fez pronunciamento memorável. Com ousadia que só a juventude entende, enfrentou o poderoso, pôs as coisas no seu devido lugar e reverteu o ânimo da assembleia. O títere saiu vaiado.

Agora, Gaia Nina se foi. Já não ouvirei dele as lições de lucidez com que sempre encarou a problemática social. O palanque da Política (a verdadeira, com p maiúsculo) emudeceu. Por isso, vi a desolação no semblante de Paulo Lobato Teixeira, Paulo Figueiredo, Alfredo Cabral, Edson de Oliveira e outros tantos companheiros que, comigo, choravam o ilustre morto no salão nobre da Ordem dos Advogados do Brasil.

Inês, sua mulher e companheira de décadas, Marcos e Raquel, seus filhos, eram a própria imagem da desolação. Todos, familiares e amigos, tínhamos presente o peso inexorável da morte que nos roubava a convivência com uma figura humana impressionante, por sua correção de caráter, por sua altivez profissional e, acima de tudo, por seu senso de justiça e honestidade.

Consolemo-nos, se é possível, com a certeza de que Álvaro Gaia Nina, o patriota e orador, o marido, o pai, o irmão, o amigo, inscreveu seu nome no panteão da glória e, como recompensa por sua ausência irreversível, deixa “na liça o ferro guante que há de forjar as gerações futuras”.

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