Felix Valois

Na noite de 11 de dezembro do longínquo ano de 1965, recebíamos o diploma de bacharel em direito, ali mesmo, na sede da velha Jaqueira, fincada na Praça dos Remédios. Esqueleticamente magro, o diretor e professor Abdul Sayol de Sá Peixoto, à chamada nominal feita pelo eterno secretário, doutor Arnaldo Rosas, atribuía o grau a cada um dos formandos, encimando-lhes a cabeça com a borla e pronunciando a fórmula latina “tibi quoque”. Éramos apenas vinte e um rapazes e uma só moça, todos repletos de sonhos e esperanças, acreditando que, conhecendo os fundamentos do que se chama Direito, estávamos prontos para buscar a realização do que se chama Justiça.

Mas meio século é tempo mais que suficiente para materializar sonhos ou, o que é mais comum, fazê-los desvanecer. Já nos formamos com a ditadura militar a pleno vapor, talvez ainda preparando as bases do que estava por vir e que, por incrível pareça, se mostrou pior, muito pior, do que as preliminares. De fato, em 1968 a ditadura nos brinda com a edição do AI-5, documento que conseguia enfeixar em pouco espaço tudo o que havia de ruim, retrógrado e malévolo no pensamento político. Ficamos sem parlamento e os tribunais eram um arremedo de cortes de justiça, feridos que foram no seu âmago a partir da clara interferência no seu próprio órgão supremo. Eram a violência e o terror na sua expressão mais requintada.

Os que ficamos na advocacia, como Alfredo Cabral, Jessé Rocha e eu, estávamos perplexos. Principalmente este humilde escriba que, desde cedo, entabulou namoro firme com o direito penal. Tudo era ameaça à segurança nacional e, numa relação de causa e efeito, tudo era crime contra a dita cuja. Basta lembrar que o falecido senador Fábio Lucena, à época exercendo o mandato de vereador em Manaus, foi processado perante um tribunal militar pelo “nefando crime” de recomendar que o povo rasgasse as guias do IPTU, a seu ver lançado incorretamente.

Havia ainda coisa mais macabra. A garantia constitucional do habeas corpus foi sumariamente suspensa, em se tratando de crimes “políticos”, o que equivalia a bani-la de uma vez por todas, tamanha a profusão de delitos que diuturnamente entravam nessa classificação. Como advogar na área? Ruía a crença, adquirida nos bancos escolares, de que os princípios do direito ainda permaneciam aqueles mesmos que deram sustentação a toda a civilização e ao império romano, traduzindo-se em “viver honestamente, não fazer mal aos outros e dar a cada um o que é seu”. Para os que têm sede de cultura: “honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”. Tudo ilusão, porque a ditadura não conhecida princípios.

Depois de mais de duas décadas de escuridão, encobrindo torturas e homicídios, volta-se à legalidade, passo primeiro para a completa reformulação da ordem jurídica nacional, a se perfazer com a promulgação da Constituição da República, no ano de 1988. Estava implantado o que passou a ser conhecido como Estado Democrático de Direito. Novos tempos, é óbvio. Novas instituições e novas esperanças, todas elas supostamente voltadas para assegurar que o povo brasileiro pudesse novamente respirar o ar da liberdade.

Parecia que assim seria até que o primeiro toque de clarim da obscuridade soou aos ouvidos da nação. O primeiro presidente eleito pelo voto direto, depois da ditadura, se embrenha em confusas transações e acaba por perder o mandato por decisão do Congresso Nacional. É certo que foi radicalmente diferente dos tempos ditatoriais. Lá teria bastado o arroubo de um coronel mais façanhudo, com o apoio de um general estrelado e encasmurrado, para que a vontade popular fosse colocada de escanteio e simplesmente desconsiderada. Foi, porém, de qualquer sorte, o alerta inicial sobre o que viria a se erigir no inimigo comum, recebendo o genérico e singelo nome de corrupção. E como cresceu o inimigo!

Incentivou-lhe a tendência para o gigantismo a ascensão do PT ao poder, em 2002, com as políticas demagógicas e paternalistas, implantadas e fomentadas por essa triste figura que é o senhor Luís Inácio Lula da Silva. Sucedido por Dilma Roussef na presidência da República, a coisa degringolou de vez, levando o país ao estado desesperador em que se encontra. O mais grave, porém, e para o ponto que interessa a este texto, é que o combate à corrupção tem levado os organismos dela incumbidos a ultrapassarem de muito a fronteira do respeito aos direitos fundamentais, ao argumento de que, sendo o inimigo poderoso, a guerra contra ele há de ser sem quartel. Daí vêm as espetaculosas operações policiais, durante as quais foram expostas à execração milhares de pessoas, em favor das quais deveria prevalecer a presunção de não culpabilidade, mais conhecida como presunção de inocência.

Pois é. Cinquenta anos de formado para ver meu país, ao qual devoto todo o meu amor patriótico, entre à irresponsabilidade e à chacota. Os que, da minha turma, já se foram (Luís Augusto Santa Cruz Machado, Sidnei Trigueiro e Wenceslau Queiroz) estão livres do vexame. Aos demais que, como eu, permanecem neste “vale de lágrimas, transmito meus cumprimentos que, se não podem ser alegres, são pelo menos sinceros, transmitindo a certeza de que não é roubalheira exacerbada que pode macular o grau que recebemos. Ele há de estar, sempre e acima de tudo, a serviço do Brasil.

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