Em cinco dias, o Flamengo vivenciou momentos distintos na sua tentativa de mexer com o mercado de transmissão do futebol brasileiro por meio dos jogos do Estadual do Rio de Janeiro.

Foi da euforia com a audiência recorde de uma partida no streaming, contra o Boavista, ao dissabor dos problemas técnicos e da enxurrada de críticas recebidas pela cobrança de R$ 10 para ter acesso ao duelo com o Volta Redonda.

O clube pretendia transmitir esta última exclusivamente pela plataforma de streaming MyCujoo, mas precisou voltar atrás, abrir seu canal no YouTube gratuitamente e oferecer a devolução do dinheiro porque o site escolhido não suportou a carga de acessos.

Todos esses capítulos se tornaram possíveis depois que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou a MP 984, em 18 de junho, dando ao time mandante a prerrogativa de comercializar seus direitos de transmissão. Até então, o texto da Lei Pelé previa que esse direito pertencia às duas partes envolvidas.

Para o executivo de marketing Bruno Maia, a sequência de fatos evidencia que, por mais que os clubes queiram bancar transmissões próprias em seus canais na internet, ainda estão longe de dominar esse mercado para fazê-lo com sucesso.

“Eles podem começar a fazer gradativamente, não expor o seu principal produto de maneira açodada e sem saber se o usuário gosta daquilo, se tem potencial de consumo para gastar grana comprando jogo a jogo. Ninguém estreia uma grande peça sem ter ensaiado antes”, afirma à Folha

Maia lançará neste mês o livro “Inovação é o Novo Marketing”, sobre negócios e gestão do esporte. Vice-presidente de marketing do Vasco de 2018 a 2019, ele não acredita que o maior papel do streaming seja o de competir com a televisão, mas o de proporcionar ao clube um grande volume de dados sobre seus torcedores.

Houve precipitação do Flamengo ao cobrar para a transmissão de domingo? Entendo que é muito cedo, sim, para fazer uma cobrança de um jogo individual. Em nenhum lugar no mundo isso acontece dessa forma. O papel do streaming é complementar, diversificar conteúdo e interpretar o comportamento da base de usuários, entender o interesse que eles têm. É precipitado pensar em transformar um jogo de futebol de alto nível de interesse onde existe uma cultura, como no Brasil, de televisão aberta. É complicado tentar migrar de forma abrupta, o que não é culpa do streaming.

Qual seria o caminho mais seguro para o Flamengo e outros clubes percorrerem nessa tentativa de bancar suas próprias transmissões? Os clubes deveriam iniciar com um conteúdo que não é “prime”, ou seja, o grande jogo. Isso depende de uma estrutura de massificação, de promoção, que hoje só está na mão dos grandes conglomerados de mídia. Os clubes não têm esse “know-how” ainda. Eles podem incorporar o streaming com conteúdo de bastidores da equipe, história do clube, transmitir partidas com menos apelo, um jogo amistoso. Começar a fazer gradativamente, não expor o seu principal produto de maneira açodada e sem saber se o usuário gosta daquilo, se tem potencial de consumo para gastar grana comprando jogo a jogo. Ninguém estreia uma grande peça sem ter ensaiado antes, ninguém vai para uma final de campeonato sem ter treinado antes. Isso vale para qualquer modelo de negócio também.

Os 2,2 milhões de pico de audiência no jogo entre Flamengo e Boavista foi um recorde no streaming, mas bem abaixo do proporcionado pela TV aberta. Quais métricas devem ser adotadas para compar os dois formatos? Como estamos falando de uma forma de transmissão, a televisão, que está presente em 100% do território nacional, e outra que ainda está muito longe disso, não existe comparação possível. A televisão cumpre o papel de alcance, mas um alcance impreciso, com muitas pessoas atingidas e que não são capazes necessariamente de consumir o produto. A principal métrica do streaming neste momento é quantas mais pessoas eu consigo trazer para o banco de dados do clube. Com quantas posso compartilhar informação ou vender serviços. O clube ter um “lead” [informações dos seguidores] na mão pode ser algo muito valioso para vender uma ação de publicidade. Agora, o lead no seu canal, não no Facebook, no My Cujoo, porque assim o dado fica retido por lá.

Há um modelo no futebol europeu que possa servir para os clubes brasileiros usarem de guia nesse caminho gradual em direção ao streaming? O principal modelo que existe hoje é o de não utilizar o streaming para produtos principais. Nenhum clube europeu faz transmissão de seus principais jogos a partir do streaming. Tem-se a pretensão no Brasil de criar lá na frente, de chegar aonde o Barcelona não chegou. A referência da Europa é clara. O Manchester City fez amistosos e transmitiu na sua TV, isso é legal, mas não são da Premier League, da Champions League. No Brasil, pode-se questionar a importância dos estaduais, mas [as TVs] pagam um valor alto para os clubes, por mais que o Flamengo não tenha achado suficiente. Em média, a grana do Estadual é quase 10% do faturamento anual dos clubes. Se o Estadual parar de ser transmitido pela televisão, talvez existe espaço para essa forma [streaming], mas não vai gerar o mesmo dinheiro tão cedo.

Dirigentes entusiastas da MP e o próprio Bolsonaro falaram em “carta de alforria” para os clubes nos direitos de transmissão. Faz sentido usar esse termo? Não faz sentido. A alforria não vem por uma decisão apenas, tem que criar um empoderamento dos clubes. Se não organizar toda a cadeia, vai liberar um ou outro time, jogando uma indústria inteira na pior. Sou a favor de que o mandante tenha a propriedade sobre o jogo, mas se não se discute a segurança jurídica dos contratos em vigor, ele fica livre para negociar e com insegurança jurídica. Qual a liberdade? Na melhor das hipóteses, poderia ser o início de uma alforria, mas quando é feito de uma maneira açodada, unilateral e sem uma discussão, cria-se uma polarização e politização sobre a discussão, que deveria ser técnica. Tanto é que o presidente [Jair Bolsonaro] celebrou a primeira transmissão do Flamengo com números bem diferentes [dos divulgados pelo clube]. Estamos vivendo muita insegurança, dúvidas, de muito pé atrás e de mais retração do que chegada de novos investimentos.

Para o patrocinador da camisa do clube e das placas no estádio ainda é mais interessante contar com a abrangência da televisão? A princípio é muito mais importante contar com a televisão. O lance é que, quando você começar a ter uma receita com streaming, terá outro tipo de patrocinador, que não está exatamente preocupado com a exposição de marca, mas quer vender um produto e utiliza a sua base de fãs. Quando temos patrocinadores na camisa dos times brasileiros, como os bancos digitais, que basicamente pagam 1/3 em média com adiantamento fixo dos valores de contrato e colocam 2/3 por performance, aí é que está o problema. Essa performance não vai acontecer meramente por exposição em camisa, não é a natureza daquela mídia.

O Brasil tem infraestrutura de internet hoje para comportar a transmissão de cinco ou mais partidas simultâneas com audiências acima de 1 milhão? A questão é a estrutura das empresas que trabalham com transmissão de dados. Óbvio que temos sobrecargas em redes de empresas de internet, mas não é o grande gargalho. O que não temos ainda é uma rede 5G, que permitiria um volume maior de dados. A Netflix tem uma estrutura para dar conta dessa demanda de enviar para todos ao mesmo tempo, mas nem todos os players têm a mesma estrutura.

Bruno Maia, 37

Responsável pelo marketing do Vasco de 2018 a 2019, Bruno Maia é consultor de negócios e da transformação digital na indústria do esporte. Formado em comunicação social pela PUC-RJ e possui especialização na Berlin School of Creative Leadership, é fundador da BMCOM e da 14, agência de conteúdo. (Folha de S.Paulo)

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