A modernidade engolfou tudo, bem na esteira da tendência globalizante que se apresenta implacável e eficiente. Fica apenas a memória de algumas coisas, pequenas, é verdade, mas que eram presentes e indispensáveis, nos longínquos tempos da minha vida infanto-juvenil. Por exemplo: nunca mais ouvi alguém dizer que possua em casa um aparador. Era apenas um móvel de madeira onde, se a memória não me trai, se colocavam objetos do dia a dia e também frutas.

Como este é um exercício de lembranças, antecipo as desculpas se algo não for rigorosamente descrito. Aliás, peço até a ajuda dos da minha geração que, se se derem à pachorra de ler isto, podem contribuir com sugestões e correções.

Eu duvido que algum jovem saiba o que seja e para que serve um púcaro. Nem tem por que saber, já que a utilidade da coisa hoje é praticamente nula, em comparação com o passado. Dá-se que, juventude, não havia geladeiras nem bebedouros. A água bebível era colocada em potes de barro, de onde precisava ser tirada para, então, ser colocada em canecos feitos de latas de leite condensado. Era aí que entrava o púcaro: consistindo ele próprio em um caneco com uma haste comprida, era introduzido no pote, possibilitando a retirada da água. Os mais comodistas guardavam sua porção de água em bilhas, também de barro, o que, por óbvio, tornava bem mais fácil a operação.

Nunca mais se viu, salvo em conservadoras lojas de ferragens, um ferro de engomar a carvão. Vem-me nítida a imagem da minha madrinha Irene, usando o instrumento em pleno calor das tardes manauaras. Era um suadouro: com o seu bojo cheio de brasas, eram estas avivadas por sopros dados na parte de trás. Ao lado, outra coisa perdida no tempo: o fogareiro de onde eram retiradas as brasas para a alimentação do ferro.

No setor da saúde, havia dogmas de que dona Lucíola não abria mão quando se tratava de combater doenças nos filhos. Kusuk era um fortificante que, segundo ela, tinha um largo espectro de atuação, sendo indispensável para manter a vitalidade e o vigor. Delicioso era o bromil, xarope contra o qual a gripe não tinha vez. Em termos de sabor era o oposto à emulsão Scott, uma coisa pastosa, que lembrava cabo de guarda-chuva, e que era usada para os males do fígado.

Ruim mesmo, nesse campo, era o combate aos vermes. Era um suplício medieval, pela forma e pelas consequências. Marcava-se o dia da execução. Às cinco da madrugada começava o ritual. Juntos, dona Lucíola e professor Valois iam de rede em rede e, em cada uma, ministravam ao infeliz uma colherada de quinopódio com mamona. O nariz da vítima tinha que ser tapado para que ela não sentisse o indigesto cheiro do preparado farmacêutico e era concedida a graça de segurar uma chave na mão bem fechada, como forma de desviar a atenção da tortura.

Depois, entrava em cena outro objeto d´antanho: o penico (urinol, para os mais sofisticados). Com tanta gente precisando esvaziar o intestino, eram vários os penicos em que se depositavam (quanta nojeira) vermes mortos ou vivos, expulsos do organismo por obra e graça do purgante antes ingerido.

Já não se ouve falar de lamparina nem de candeeiro, que reinaram soberanos nos tempos em que o apagão não era um fenômeno ocasional, por isso que a ausência de energia elétrica era uma constante. Igualmente, mais nenhum menino toma banho de cacimba ou joga futebol de botão feito com caroço de tucumã.

No fim do ano, era a época dos cartões de natal e dos presépios. Não se falava em enfeitar as árvores e os Correios entravam em intensa atividade para entregar os cartões de cumprimentos ou agradecimentos. A internet pôs fim a tudo isso, inclusive aos almanaques que eram distribuídos nesse período.

Também acabou o guaraná Luseia. Tudo foi embora, menos a saudade de algumas coisas que eram boas e menos complicadas. Quando vejo minhas netinhas brincando com telefone celular, tenho quase a exata dimensão da distância que culturalmente nos separa. Elas são a cibernética, eu, coitado, apenas um velho.

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