De elogiável sensatez a decisão da desembargadora Socorro Guedes negando a pretensão de ser substituído, neste momento, o governador do Estado. A questão não pode ser encarada pelo ângulo das preferências políticas, por isso que se há de ater às regras do mais elementar bom senso. “A sociedade precisa de paz”, proclamou a magistrada, e foi isso, ainda que transitoriamente, o proporcionado pelo decisório. De levar em conta que há recurso pendente de julgamento em tribunal superior. É indiscutível, pois, a possibilidade de ser modificado o entendimento esposado pela corte local. Em acontecendo isso (e tivesse sido noutro sentido a postura da presidente do TRE) teríamos um espetáculo circense com a troca cíclica de governantes, numa clara evidência de insegurança jurídica e ameaça ao bom desempenho dos serviços essenciais, a cargo do ente estatal. Impensável.

Ademais (e toco no assunto apenas porque está vinculado ao tema), é muito estranho esse negócio de quem perdeu eleição assumir o lugar de quem foi eleito. O sistema político sobre o qual estão assentadas as bases de nossa legislação eleitoral exige maioria de votos para a assunção dos cargos do Poder Executivo. É simples assim: numa eleição majoritária, quem tem mais votos ganha e leva; quem tem menos votos, põe a viola no saco e fica no aguardo do próximo pleito. Ora, mas se ocorre (como foi o caso agora, no Amazonas) de o vencedor ser afastado por decisão judicial, uma vez tornada esta definitiva, escapa à lógica seja dada posse ao perdedor, pela singela razão de que não teve ele votos suficientes para legitimar a ocupação do cargo. Algo me diz que um sentido de mínima coerência está a exigir que novas eleições sejam convocadas, a fim de que se possa saber esta coisa primária: qual o candidato que detém a preferência da maioria do eleitorado. Perder a eleição e ir ocupar o cargo para o qual foi rejeitado, perdoem-me, é um “non sense” que está na contramão da história.

Mas deixa isso pra lá. Tenho coisas mais interessantes de que me ocupar, como é o caso do comportamento da magistratura, na sua função de dirimir conflitos sociais. Por ser o mais recente, mencionei o episódio com a desembargadora Socorro Guedes. Mas ele, felizmente, não é o único que presenciei ao longo desta cinquentenária vida de advogado. Vou relatar outro, que me vem à lembrança porque nele se insere um especial toque de sensibilidade, capaz definir um sentido de justiça. Vamos a ele: um homem, acusado da prática de homicídio, foi levado a julgamento e logrou ser absolvido pelo Tribunal do Júri. Conquanto nenhum motivo houvesse para tanto, o Ministério Público interpôs recurso, o que obrigou a subida dos autos ao Tribunal da Justiça, o qual, na espécie, tinha dois caminhos: confirmar a decisão absolutória ou determinar fosse o réu submetido a novo julgamento pelo colegiado popular.

Por um desses fenômenos em que é pródiga a burocracia brasileira, os autos de processo ficaram passeando de gaveta em gaveta, de um escaninho para outro, dormitando aqui e ali. O certo é que só passados mais de dez anos o feito chegou afinal ao Tribunal de Justiça. Ali, cumpridas as regras de praxe, feita distribuição, foi sorteada como relatora a desembargadora Marinildes Costeira de Mendonça Lima. Seu voto, acompanhado à unanimidade pela turma julgadora, é o outro exemplo de sensatez que me propus recordar. Dizia algo mais ou menos assim: os próprios concidadãos do acusado entenderam não ser ele merecedor de nenhuma pena criminal; o longo espaço de tempo decorrido desde a decisão do júri demonstrou que aquela pessoa não representava nenhum perigo para a sociedade, pois não se teve notícia de que ela se tivesse envolvido em algum outro evento que necessitasse a intervenção da justiça; e concluía: revolver o passado, nessas circunstâncias, sobre não ser de nenhum interesse relevante para a sociedade, teria apenas o condão de levar desassossego e desestrutura para uma família, o que, à evidência, não é a função do judiciário. Foi mantida a absolvição. Grande desembargadora Marinildes. Faz-nos falta no Tribunal de Justiça do Amazonas.

Para ser coerente, faço o contraponto, voltando a relatar, como já o fiz em outra oportunidade, o episódio do juiz que, ao inquirir uma testemunha, fez a advertência quanto à necessidade de ser preservada a verdade nos seguintes termos: “Dona Maria dos Anzóis Prazeres, a senhora comparece hoje a este sagrado templo como testemunha no processo-crime que a Pública Justiça move contra o réu José Fredegundo. Quero lhe dizer que a senhora tem que tomar muito cuidado porque hoje sua vida pode mudar. Se eu perceber que a senhora está mentindo, a senhora sairá daqui algemada, diretamente para a penitenciária”. E concluía eu esse relato acrescentando o seguinte: ´A pobre mulher tremeu dos pés à cabeça. Então aquilo era a Inquisição e o juiz, o Torquemada? Decepcionada, conseguiu balbuciar: “Doutor, o senhor está me ameaçando”. A cavalgadura retrucou de pronto: “A senhora ainda não me viu ameaçar alguém!”. Salomão faria paráfrase de si mesmo e diria: “Vaidade das vaidades, tudo é estupidez”.

Mas é assim mesmo. A dialética exige contradições que tais. Felizmente, tenho que reconhecer, a turma das desembargadoras Socorro e Marinildes está em maioria, enquanto os quadrúpedes do segundo time tendem a pastar num isolamento, que dá bem a dimensão de como os encara a sociedade: são tumores malignos que, logo e logo, precisam ser extirpados.

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