Felix Valois

Acreditar num deus e professar sua respectiva religião são direitos assegurados a todos. A meu sentir, têm sido usado em excesso, mas isso é questão de gosto e gosto não se discute. Agora, ser fanático e estúpido é abuso que não pode e não deve ser tolerado, seja ele praticado em nome da entidade que o for. As provas mais recentes desse abuso aí estão na cara de todos nós, como que galhofando da nossa pretensão civilizatória e moderna: uma bomba derrubou um avião russo no Egito, com mais de duzentas pessoas a bordo, e mais de uma centena de seres humanos encontrou a morte nos atentados de Paris, na semana passada.

No fundo dessas atrocidades, o fanatismo religioso. Infelizmente tem sido assim ao longo da humana História, mudando-se apenas a forma, mas com a sustentação da premissa básica, numa busca insana de demonstrar a supremacia de uma divindade sobre outra (ou outras), ao fito de arrebanhar ovelhas para o redil supostamente privilegiado. Tolice pura e simples que, nem por o ser, deixou de causar estragos ao longo dos tempos e nas mais variadas latitudes e longitudes.

A igreja de Roma, por exemplo, se buscou dar conotação mais branda ao irado e vingativo deus dos hebreus, adocicando-o com a suave figura do Cristo, nem por isso se mostrou leniente com as divergências que se lhe opuseram. Veio a Inquisição. As fogueiras arderam aos montes, queimando vivos os corpos de homens, mulheres e crianças apenas pela prática do que se conhecia pelo então terrível nome de heresia. E as bruxas, que tudo podiam no seu obscuro mundo da magia, não conseguiam escapar das chamas vorazes. De nada lhes adiantou terem sido pioneiras na aviação, conseguindo decolar em vassouras, como de nada lhes valeu os pactos tenebrosos que pudessem ter com o demônio, ele mesmo. Foram assadas do mesmo jeito. É certo que algumas, ouvindo e acolhendo o piedoso apelo de santos frades, reconheciam o pavoroso erro e admitiam a reconciliação com a fé renegada. Recebiam, por isso, mercê especial: eram estranguladas antes de que o fogo lhes consumisse as carnes.

A coisa não melhorou com a Reforma luterana. Muito pelo contrário, acirraram-se os ânimos entre católicos da velha guarda e os novéis protestantes, estes também dispostos à luta pela supremacia de seu recém criado catálogo de regras, em clara oposição aos dogmas consagrados pela Santa Sé. Um dos efeitos mais trágicos dessa disputa foi a Noite de São Bartolomeu. Milhares de protestantes huguenotes foram sumariamente trucidados na Paris do século XVIII, com ciência da alta realeza e, no mínimo, a omissão de Roma. Estava lançado o balão de ensaio para a era do “nada vi e nada sei”, que veio a tomar corpo precisamente aqui no Brasil, depois que Lula e Dilma se negaram a reconhecer a bandidagem e a roubalheira que se esbaldaram em seus respectivos governos. Por outro lado, a protestante rainha Elizabeth I, da Inglaterra, fez o cutelo chegar ao pescoço da católica rainha Mary Stuart, da Escócia. Tudo birra, tudo insensatez.

De minha parte, na minha santa ignorância, não consigo atinar como é que as pessoas se deixam levar por esse tipo de fanatismo. Afinal de contas, basta passar uma vista d’olhos na História para verificar que deuses sempre houve e em quantidade e maneiras mais do que suficiente para satisfazer todos os gostos e exigências. Urano, na Grécia, por exemplo, engolia os próprios filhos, com receio de que lhe ameaçassem o poder. Lá mesmo, Hermes era o precursor da comunicação, fazendo, com as asas nos pés, o serviço que a internet hoje presta, com a vantagem de que não dava ensejo a comentários imbecis como os que pululam na rede mundial de computadores. Dionísio, rebatizado como Banco pelos romanos, era uma espécie de protetor dos pinguços, sendo certo que, sem ele, a indústria do vinho não teria alcançado o nível de excelência que hoje ostenta. Eros posava de imoral e Apolo, de bonitão. Todos eles muito bem assentados no Olimpo, bebendo ambrosia e néctar, apenas de vez e quando se dando à pachorra de olhar para a patuleia humana.

Assim também foi entre os romanos e os escandinavos. Igualmente, no Egito, onde Anukis era uma gazela, enquanto Bastis, depois chamada Artemisa, era uma gata. Anúbis, o antecessor daquele Hermes grego, era um cachorro, ao passo que Hórus tinha toda a pinta de um falcão. O antílope representava Satis (Hera), mas Neith (Atena) se identificava mais com a coruja.

São deuses a mancheias, como se pode ver. Vai daí que o fanatismo religioso, além de estúpido, é profundamente lamentável, pela simples de razão de que não pode levar a lugar nenhum. O terrorismo que deriva desse fanatismo é, em si próprio, coisa de besta-fera. Termino transcrevendo a nota publicada na coluna de Ancelmo Góis, no jornal O Globo, do dia 16 deste mês, sob o título “Terror em Paris”. Ei-la: “ O escritor José Saramago (1922 – 2010) era ateu. Ainda assim, vale uma reflexão sobre este trecho do artigo do mestre, ‘Fator Deus’, escrito logo depois dos atentados às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, pelos fundamentalista islâmicos da al-Qaeda: ‘Disse Nietsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel”.

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