Na noite do dia 9 de janeiro de 2024, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, quando o professor Caraíba se preparava para dormir, depois de um dia inteirinho de trabalho docente, eis que apareceu bem na sua frente, com um cachimbo na boca, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman e lhe disse: “Daqui para frente é a você que vou contar minhas histórias”.
Ele nem esperou o professor Caraíba responder se aceitava ou não a sua proposta, e foi logo dizendo: “Toma nota aí. Eu não morri. Eu vivo na mente de todos aqueles que são contra as relações passageiras, as relações rasas. Eu amo a profundidade. Eu amo a verdade. Eu amo a justiça. Eu amo a fé”.

“O senhor não é ateu?”, perguntou o professor Caraíba, assustado. “Parece que você ainda não entendeu que estamos vivendo tempos difíceis. Não se trata apenas de religião, de crises. Acontece que esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome, o que se compra, são apenas sedativos morais que tranquilizam nossos escrúpulos éticos”.

Em seguida, Zygmunt Bauman abriu o livro “Sociedade Líquida” e começou a ler: “Enfrentar o status quo exige coragem, considerando-se o enorme poder das forças que o sustentam; coragem, porém, é uma qualidade que os intelectuais, antes conhecidos por sua bravura ou por seu destemor simplesmente heroico, perderam nas suas empreitadas em busca de novos papéis e novos “nichos” como especialistas, gurus acadêmicos e celebridades midiáticas”.

Com o coração acelerado, quase saindo pela boca, o professor Caraíba tentou se comunicar com o filósofo, dizendo-lhe: “Hoje eu tive um dia cheio e preciso descansar. Amanhã eu encerro a minha disciplina. Assim teremos mais tempo para conversar”. E mesmo assim, com a voz sonolenta, quase bocejando, ainda teve força e coragem para perguntar: “O senhor pode vir amanhã?”. Mas Zygmunt Bauman, indiferente, continuava lendo:

“A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo”.

Despois de fazer uma breve pausa na leitura, Bauman lhe disse: “Nós somos responsáveis pelo outro, estando atentos a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas”.

O professor Caraíba estava cada vez mais confuso e faltava-lhe o ar, mas Bauman continuava lendo e lia sobre valores existentes na sociedade atual, capitalista, utilitarista e excludente: “A paixão por se fazer notar é um exemplo importante, talvez o mais gritante, dos nossos tempos, nos quais a versão atualizada do cogito (penso) de Descartes seria: Sou visto (observado, notado, registrado), logo existo”.

Ao mesmo tempo em que Bauma lia partes do seu livro “A cultura no mundo líquido moderno”, via-se no seu semblante um pouco de tristeza e mesmo com a voz embargada, ele continuou: “Os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar”.

“No alto de sua sabedoria, diga-me: quais são as respostas para os problemas que nos afligem? Por que a sociedade atual esqueceu a arte de questionar?”. Como Zygmunt Bauman não respondia nenhuma de suas perguntas, o professor Caraíba ficou pensando no que escreveu Fernando Pessoa: “Nada se sabe, tudo se imagina”.

Para quem não conhece, ou não se lembra, Zygmunt Bauman é o grande pensador da modernidade, o qual qualificou o célebre conceito de “liquidez”. Biograficamente, Zygmunt Bauman nasceu no dia 19 de novembro de 1925 e faleceu no dia 9 de janeiro de 2017, aos 92 anos. Sociólogo e filósofo de mão cheia, Bauman escreveu mais de 30 livros e publicou milhares de artigos científicos, até solidificar o seu conceito de “modernidade líquida”.

Luís Lemos é filósofo, professor, autor, entre outras obras, de “Jesus e Ajuricaba na Terra das Amazonas” e “Filhos da Quarentena”.

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