Rever amigos é das coisas mais prazerosas que a vida pode oferecer. Observem que não disse “amigos verdadeiros”. E não o fiz pela simples razão de que não posso concebê-los sem esse adjetivo. Se a amizade nasce da empatia e se consolida com o tempo, é isso suficiente para distingui-la do simples “conhecimento”, caracterizado este pela superficialidade. Camilo Castelo Branco, o primoroso escritor português, bem entendia do assunto. Em belíssimo soneto, depois de proclamar as “vaidades que sentia” por já haver contado “cento e dez, ou talvez mais” amigos, emite o amargo lamento: “Um dia adoeci profundamente. Ceguei!/Dos cento e dez houve um somente/Que não desfez os laços quase rotos”. À evidência, não eram amigos e o bardo bem soube defini-los no terceto final: “Que vamos nós (diziam) lá fazer?/Se ele está cego não nos pode ver./Que cento e nove impávidos marotos”.

Marotos é o que eram com absoluta certeza, porque um amigo nem cogita de um comportamento dessa ordem. Para ele há de ter validade permanente a fórmula sacramental do matrimônio religioso: “na saúde e na doença”. Pois muito que bem. O meu ponto mesmo é dizer do monumental prazer que tive na semana passada, em pleno Rio de Janeiro, ao reencontrar Clemente Hungria. Não o via há muito tempo. Conhecemo-nos na década de setenta do último século e de lá até hoje, apesar da distância entre nossos locais de moradia, consolidamos uma amizade, calcada, como não podia deixar de ser, no respeito e na admiração.

Dei-lhe um telefonema e, de imediato, veio o convite para o almoço em sua residência. Como recusar? Impossível. Eu precisava vê-lo para matar as saudades. Saio do metrô, na praça Cardeal Arcoverde, e me dirijo ansioso para o apartamento 1002, do edifício Jade. À porta, a simpatia contagiante da verdadeira dama que é a doutora Evany Hungria, dedicada esposa e companheira do meu amigo. Vem Clemente, apoiado num andador de metal, a passos lentos em direção à cadeira de rodas, onde faz repousar toda a respeitabilidade de seus noventa e seis anos. Que emoção abraçá-lo e lhe depositar um singelo beijo na alva cabeleira! Foram momentos de pura felicidade.

A figura, quase centenária, é um poço inesgotável de gentilezas e recordações. Falou-me com carinho e saudade de Alberto Simonetti, o nosso ex-presidente da OAB/AM, que com ele também estabeleceu laços afetivos. Vibrou quando lhe disse da atuação impecável que está tendo na magistratura, como representante dos advogados, o doutor Domingos Chalub, que ambos, Clemente e eu, conhecemos ainda nos tempos de estágio.

Já deu para perceber que Clemente também passou a vida inteira na advocacia. Hoje, impossibilitado de ir ao escritório, conta com a colaboração inestimável da doutora Evany, para dar andamento às causas confiadas ao seu patrocínio. E que advogado brilhante tem sido o meu amigo! Honrou e honra, sob todos os aspectos, o nome memorável de seu pai, o jurista e ministro Nelson Hungria, a respeito de quem ele me contou passagem deliciosa e bem característica da verve que lhe era inerente. Já aposentado de suas funções no Supremo Tribunal Federal (que falta está fazendo!), o ministro foi advogar no escritório do filho. Em uma sessão de julgamento, ouve de um dos integrantes da turma, a afirmativa de que, apesar de não concordar inteiramente com os argumentos do relator, iria acompanhar-lhe o voto por que “a ele devo tudo o que sou na vida”. Como o voto era contrário aos interesses do cliente, a réplica do ministro foi definitiva e arrasadora: “Então Vossa Excelência não lhe deve coisa nenhuma”.

Delicioso. Como deliciosas foram as lembranças dos momentos passados no restaurante Pardelas, fincado no centro do Rio de Janeiro. Ali, era obrigatória a presença diária de Clemente e de seus dois amigos mais chegados e inseparáveis: Jorge Tavares e Evaristo de Moraes Filho, o criminalista. O local, na verdade, era quase um ponto de concentração da nata da advocacia carioca. Os finais de tarde, que hoje receberiam o ridículo nome de “happy hour”, eram regados a chope e uísque e os encantos e decepções da vida forense iam desfilando como num filme em câmara lenta.

Velhos tempos! Ficaram as recordações, essas que geram uma saudade imorredoura. Mas o certo é que rever Clemente e doutora Evany foi um refrigério. E, de sobra, ainda ganhei uma preciosidade: os dois primeiros volumes da obra de Nelson Hungria, condensada e atualizada pelo professor René Ariel Dotti. Definitivamente, foi uma tarde feliz. Com Clemente e sua esposa ficaram todas as manifestações do meu mais profundo respeito. E eu voltei para Manaus com o coração transbordando daquela alegria de que só os amigos podem desfrutar. Grande Clemente Hungria!

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