Só naquela manhã o professor Caraíba já havia chamado à atenção do aluno Daniel três vezes: “Para de andar pela sala! Sente-se no seu lugar! Até parece que tem formiga na tua cadeira”. Daniel então voltou, sentou-se e disse em voz alta: “Eu odeio estudar”.

Calmamente o professor Caraíba se aproximou de Daniel e disse-lhe: “Escreva no seu caderno o que você acabou de pronunciar”. “Mais professor…”. “Não tem mais não! Isto é uma ordem! Escreva!”. Daniel pegou a caneta e escreveu “eu odeiu istuda” com tanta raiva que furou a folha do caderno.

Diante daquela situação, o professor Caraíba respirou fundo. Tomou um copo de água e contou até dez… Depois de tantos anos na educação, ele se sentia decepcionado, com a boca seca e as mãos molhadas de suor; contava os dias para a sua aposentadoria. Mas ele nunca haveria de se acostumar com uma situação daquela, com alunos que não sabiam escrever o próprio nome. Ele era romântico. Acreditava na educação. “Só a educação salva”, dizia.

Ainda estava envolto em seus pensamentos quando entrou na sala de aula a pedagoga da escola, Dona Deodata, segurando uma folha amarela, com um carimbo na ponta e um cheiro forte de tinta fresca e lhe disse: “Aqui está o laudo-diagnóstico do aluno. Eu estou lhe entregando uma cópia para que o senhor tome ciência. Assine aqui professor…”.

Quando a pedagoga saiu, o professor Caraíba fez um esforço sobre-humano para ler o que o médico havia escrito. “Paciente com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 2”. E continuou lendo: “Este nível de TEA é considerado moderado e se caracteriza por dificuldades significativas na comunicação e interação social”. E por fim concluía o médico em seu diagnóstico: “Pessoas neste nível podem enfrentar maiores desafios para iniciar ou manter conversas, interpretar expressões faciais e compreender nuances da linguagem”

O professor Caraíba ficou pensativo e até com a consciência pesada pelas inúmeras vezes em que ele havia chamado à atenção de Daniel em sala de aula. Acontece que aquele diagnóstico parecia de outra pessoa. Em nada se parecia com Daniel. Daniel não tinha dificuldade nenhuma de “comunicação e interação social”. Pelo contrário, ele era extrovertido demais, um bagunceiro convicto, que ia para a escola somente para atrapalhar quem queria estudar.

Para o professor Caraíba, portanto, o maior problema de Daniel não era dificuldade de “interpretar expressões faciais e compreender nuances da linguagem” e sim falta de educação, de disciplina, de valores. E tudo começava porque ele não sabia andar, ou seja, quando Daniel andava parecia que arrastava uma tonelada de ferro nos pés e como ele não parava quieto, vivia fazendo barulho, de estourar ouvidos de surdo e de pôr fantasma para correr.

Tentando fazer o seu próprio diagnóstico, o professor Caraíba disse certa vez: “Venha até aqui Daniel”. “O que foi professor?”. “Venha até aqui na minha mesa”, insistiu o professor. “Sim senhor”. “Vamos!”. “Já estou indo”. “Levante os pés”. Todos os alunos tampavam os ouvidos por causa do barulho que Daniel fazia. “Sapato de ferro”; “Sapato de ferro”, diziam seus colegas.

“Novamente”, ordenou o professor Caraíba. Daniel ia e vinha até o final da sala todo feliz! E para o desespero da turma o professor Caraíba disse: “Vamos repetir a lição mais uma vez”. Novamente, os colegas aterrorizados pelo barulho que Daniel fazia, gritaram em uma única voz: “Naaaaaaaão professor! Chega!”. “Sim! Eu vou fazer ele andar direitinho, igualzinho a vocês”.

Minutos depois, na sala dos professores, na hora do intervalo, a pedagoga da escola perguntou para o professor Caraíba: “Que barulho era aquele na sua sala professor? Aconteceu alguma coisa?”. “Nada demais! Eu só estava ensinando o Daniel a andar”. “Como assim, professor? O Daniel sabe andar muito bem, ele só é autista!”. “O problema do Daniel é falta de disciplina, só isso”, respondeu o professor Caraíba visivelmente chateado. “E o seu problema é de fazer politica na escola”, disse mordendo os lábios dona Deodata e saiu da sala à francesa.

Todos os dias, nas duas semanas seguintes, o professor Caraíba chamava o aluno Daniel até a sua mesa. Aos poucos ele foi aprendendo a andar sem arrastar os pés no chão. O barulho foi diminuindo na sala de aula, a turma foi se concentrado e o rendimento escolar melhorou muito, chegando ao ponto de obterem pontuação máxima no exame final, até o próprio Daniel.

No final do ano, na festa de formatura da turma, para o desespero da pedagoga da escola, dona Deodata, o professor Caraíba fez um discurso emocionando e destacando as palavras do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, disse: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”.

Luís Lemos é filósofo, professor, autor, entre outras obras, de “Jesus e Ajuricaba na Terra das Amazonas” e “Filhos da Quarentena”.

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