
Por Carlos Santiago
José acordou sentindo o seu corpo “moído” e com a sua mente ressoando as palavras do seu líder religioso afirmando que a condição de pobreza era de sua falta de fé e de seu não pagamento das ofertas à igreja. Estava numa situação complexa, pois naquela semana, não lhe sobrou dinheiro nem para comprar café e pão, vivendo de chá de capim-santo e bolachas duras. Ovo de galinha e o óleo de soja há dias não eram comprados para a primeira refeição da família. Sua vida parecia repetir as andanças do personagem “Naziazeno Barbosa”, do livro Os Ratos, de Dyonélio Machado. Mas, tinha que ir trabalhar, a vida continuava com dureza.
Caminhava e escondia entre suas entranhas um simples aparelho de celular, porque já tinha sido roubado várias vezes. Deixava a sua residência de madrugada, pegava o transporte público caro, sempre atrasado, sem segurança e fedido. Não tinha só medo de bandidos, mas também de policiais. Os créditos que levava só davam para pagar a condução para levá-lo ao posto de trabalho.
Mesmo com barulhos de pregadores dentro do ônibus e de músicas religiosas e sertanejas, ele não deixava de pensar nas enfermidades da mulher e do filho. A esposa não conseguia um exame de mamografia no sistema de saúde pública e o seu primogênito precisava cuidar dos dentes.
Ganhando um salário mínimo, com tantos descontos, não tinha condições para bancar as necessidades básicas da família. Era necessário um outro trabalho, em outro horário, mas estava complicado, porque sua jornada foi fatiada e imposta pelo patrão. Chegava às cinco horas da manhã, às nove horas ficava liberado para retornar às quinze horas e finalizava às vinte horas da noite, para completar a carga horária de oito horas por dia.
No curto tempo vago, fora do trabalho formal, antes e depois do almoço, virava entregador de água e gás, ganhava alguns trocados para pagar o almoço e o ônibus de volta pra casa. Já tinha sido convidado para cometer ilícitos, mas nunca aceitou.
Gostava das coisas certas e cresceu ouvindo as palavras que dizem: “não roubarás, não matarás e ame o teu próximo”. Alguns de seus amigos que cometeram pequenos ilícitos estavam presos ou foram mortos na prisão.
Terminou o ensino médio com muito esforço, precisou trabalhar ainda muito jovem. Os professores nunca lhe ensinaram corretamente os verbos, a separação das sílabas, o significado de cultura, as potências com expoentes fracionários e os biomas do Brasil. José lembrava que a maioria dos seus docentes não tinha formação na área de atuação.
Como diz o dito popular: “tudo pode piorar”. Naquele dia sofreu um acidente de trabalho. Com dores no braço, ficou horas esperando um atendimento numa unidade de saúde, foi liberado com uma lista de remédio para comprar e depois passou muito tempo esperando o transporte público para retornar à sua família.
Olhou pela janela do ônibus e observou um jovem com problemas de locomoção vendendo água no sinal de trânsito, em um cruzamento de ruas, em frente ao Fórum de Justiça, ocupando espaço com engravatados e sendo ignorado por aqueles que iam ao Fórum.
Quando chegou na sua casa encontrou a sua mulher chorando. A consulta dela para a realização do exame de mamografia foi cancelada. O filho continuava com problemas nos dentes. As contas de energia e de água estavam caras e inadimplentes. E as palavras do líder religioso continuavam em sua mente: “você não tem fé e não ajuda a obra de Deus”.
Resolveu ir rezar. Entrou no quarto, antes de iniciar a reza, retirou o celular de dentro das calças e foi lendo os noticiários. Ficou atento sobre os desvios de dinheiro público por congressistas, os penduricalhos milionários de magistrados e de membros dos tribunais de contas, os benefícios financeiros que ganham os deputados estaduais e o envolvimento de religiosos em crime de pedofilia. Então, o humilde e honesto homem gritou alto. Um grito que foi ouvido por toda vizinhança. Talvez o eco possa ser também ouvido em 2026, para o bem ou para o mal do país. Pensei nisso!
Sociólogo, Cientista Político e Advogado.