O texto que abaixo transcrevo foi publicado originalmente em 2011. Foi uma forma que encontrei de prestar homenagem a grandes professores da língua portuguesa, hoje tão negligenciada. O vernáculo tem sido tratado como lixo. E não estou manifestando uma caturrice purista. Sei muito bem que, como organismo vivo, a língua sofre influências e necessariamente interage com outras. O que me aflige é a inexplicável utilização de palavras estrangeiras para significar coisas que encontram correspondência perfeita no vocabulário nacional. Todos já viram, por exemplo, na vitrine de uma loja o cartaz informando “sale” ou “30% off”. Custava o infeliz escrever “vende-se” e “desconto de 30%”? Até parece que o uso do estrangeirismo torna as coisas mais atrativas.

Por essas e outras, e conhecendo bem os  personagens a que me reportei, acredito que eles, cada um a seu modo, haveriam de cultivar profunda ojeriza pela forma como tem sido tratado o idioma pátrio. Seu aprendizado, lembro-me bem, era proporcionado a partir do curso primário, estendendo-se até a quarta e última série do ginasial. Hoje a nomenclatura desses períodos é outra, mas o certo é que, atingindo quatorze (no máximo dezesseis) anos, o jovem estava apto a ler, compreender e escrever de maneira correta. Com certeza não havia lugar para o espetáculo circense encenado pelo ENEM. Eis aí o que escrevi há quase uma década:

Uma noite dessas sonhei com meu pai. Estávamos usando um desses programas de computador que permitem a interlocução com imagem e som. Do lado dele estavam dois outros filólogos bem conhecidos das gerações mais antigas de amazonenses: o professor Antônio Gonçalves da Encarnação Filho e o padre Raymundo Nonato Pinheiro.

De pronto, um pedido de desculpas: “Meu filho, eu não estou muito familiarizado com essas novidades de, como é que se chama?, internet. Afinal, quando saí daí, em 1958, a tecnologia mais avançada que eu conhecia era aquele rádio Phillips. Você se lembra? Era lá na Leonardo Malcher e o infernal aparelho fazia uns ruídos que obrigavam o ouvinte paciente a, logo, logo, ter que consultar o doutor Avelino Pereira ou o doutor Franco de Sá. Mas, vamos lá, qualquer coisa você me ensina”.

Expliquei-lhe que também eu, apesar de ainda estar por este vale de lágrimas, não sou nenhum perito nessas modernidades e as vou enfrentando por absoluta necessidade de sobrevivência. E adiantei: “Qualquer coisa, o senhor clica em “reinicializar” que geralmente resolve o problema”.

O professor Encarnação não se conteve e interveio: Ó, Valois. Que barbarismos são esses? Você, que foi um bom aluno, usando “clicar” e essa outra coisa monstruosa que, acredito, diga respeito ao reinício. Isso não é português. Afinal de contas, não temos no vernáculo o verbo “reiniciar”?

Recebi a repreensão com humildade e ponderei que eles teriam que se acostumar com “download”, “browser”, “times new roman”, “gadget” e outros termos específicos, a fim de que tivéssemos uma chance de levar a conversa a bom termo.

Foi a vez de o reverendo padre se manifestar: “E latim, Valois? Ainda se estuda por aí?” Não fosse o respeito que sempre tive pelo trio, teria respondido singelamente “nem português”, mas, de maneira diplomática, tentei dar a entender que o Ministério da Educação, por questões de alta relevância técnica, baniu do ensino médio o latim e a filosofia. Banalidades, diz o oficialismo.

Conversa vai, conversa vem, disse-lhes que agora a pessoa entra na Universidade e lá é que vai tentar aprender algo sobre crase, concordância verbal, concordância nominal e conjugação. “Mas isso era coisa do curso primário, com sedimentação nas quatro séries do ginasial!”, foi a reação do velho Valois, que tirou os óculos e encarou, estarrecido, seus dois colegas.

O papo não estava em bom rumo. Dei uma guinada: “Acredito que os senhores já saibam que hoje somos governados por uma senhora”. “Até que enfim”, exclamaram em conjunto. “E a que partido pertence a Presidenta? Ao PSD, ao PTB ou à UDN?” “Ao Partido dos Trabalhadores – PT”, respondi, explicando que era uma agremiação surgida depois que eles partiram e que, pregando respeito à mais rígida ética, proporcionou o mensalão, cujos protagonistas continuam lindos e loiros a ditar as regras na República, dando as cartas da forma que lhes apraz.

Não tive tempo de explicar o neologismo “mensalão”. O sinal começou a cair e nem pude perguntar pelo professor João Chrisóstomo de Oliveira. O último que ouvi foi algo que me soou como “Que tristeza! Parece que estamos melhor por aqui”.

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