Os portugueses usam a deliciosa expressão “não me venhas cá de borzeguins ao leito” quando querem significar que a pessoa não se está comportando de maneira adequada, advertindo-a para tomar jeito. Seria de usá-la neste momento por que passa a República. Depois daquele espetáculo circense que os deputados propiciaram no dia 17 de abril, invocando desde venerandas avós até notórios torturadores e assassinos, o país se debate agora em uma discussão tão estéril quanto estúpida. Isto porque a turma de choque da senhora Dilma Roussef (que, idiotamente, insiste em ser chamada de “presidenta”), à frente o capitão do mato Lula da Silva, brada aos quatro ventos, com voz estentórea, que está em curso um golpe. O argumento estrutural é o de que não houve cometimento de crime, com a natural consequência de que, portanto, nenhuma punição é cabível. “Nulla poena sine culpa”, já diziam os antigos romanos.

A coisa, parece, não é bem assim, e a discussão, nos moldes em que está sendo levada, teria perfeito cabimento em uma torcida de jogo de futebol, mas está completamente deslocada quando inserida nas casas congressuais. Vamos com método e por etapas. Quando alguém assume a presidência da República há de sentir, além da plena realização de seus desejos e ambições políticas, a imensa e brutal responsabilidade que está ínsita na função. Afinal de contas, trata-se do múnus público mais importante dentro do quadro institucional traçado pela ordem jurídica. Mas, se confere regalias e poder, o cargo não tem, nem poderia ter, o condão de tirar a humana condição da pessoa que a ele foi alçada. Quero com isso significar que o presidente da República, como qualquer outro de seus compatriotas, continua sujeito de direitos e obrigações, inserindo-se entre estas a mais primária de todas: respeitar a lei.

Ora, se, como não escaparia ao Tiririca, o ser humano pode cometer erros, resulta patente que o presidente, seja ele quem for, pode obviamente incidir nessa falha, que será mais ou menos grave, dependendo essa classificação da análise detalhada de um fato determinado. Pois muito que bem. O que, no frigir dos ovos, aconteceu no Brasil? Apenas isto: alguns cidadãos, exercendo com amplitude seu direito de petição, entenderam que a senhora Dilma Roussef praticou crimes de responsabilidade quando pedalou e, a partir dessa convicção, se dirigiram a quem de direito, solicitando que sejam feitas as necessárias investigações e que, uma vez observadas com rigor as regras processuais estabelecidas, seja dado um veredito a respeito do assunto. Singelamente foi isso e nada mais além disso, estando-se, pois, no campo da mais absoluta normalidade, como haverá de concluir o mais bisonho dos estudantes de direito.

Temos, pois, que, sendo o argumento de defesa da senhora Roussef a negativa da prática do delito que lhe foi imputado, este argumento é o próprio mérito da questão a ser decidida. Exemplifico para que não me admoestem quanto ao uso de juridiquês. Se o Ministério Público me imputar, por exemplo, a prática de um homicídio e a minha defesa se orientar no sentido de que jamais cometi tal crime, como será normalmente resolvida tal pendência? Assim: deverei eu ser levado a julgamento pelo Tribunal do Júri, ao qual competirá dizer se eu fui ou não autor do ilícito penal. Se a acusação fosse de lesão corporal, aí então a decisão seria de um juiz de direito, porque essa coisa de competência para processo e julgamento é algo pré-estabelecido nas leis respectivas.

Voltemos à vaca fria. Se o hipotético homicídio de que acima falei fosse imputado à senhora Roussef, ela seria julgada pelo Supremo Tribunal Federal porque tal crime, de acordo com as regras técnicas, entra no elenco dos “crimes comuns”. Acontece que a acusação feita a ela é de “crime de responsabilidade”, de tal maneira que, ainda segundo as regras técnicas, a competência para julgar e decidir é do Poder Legislativo. E é o que está sendo feito. Primeiro, a Câmara dos Deputados autorizou a instauração do procedimento. Agora é a vez de o Senado da República, num momento preliminar, optar ou não pelo prosseguimento do feito para, ao final, dizer em termos definitivos se a acusação é procedente ou não, aplicando, na primeira hipótese, a sanção respectiva que, no caso, é a destituição do cargo.

Houaiss diz que, em sentido figurado, golpe é uma “ação ou manobra desleal”. Se acrescentarmos ao substantivo a expressão “de estado”, teremos que “golpe de estado” há de ser entendido como o comportamento desleal e insidioso que busca, por manobras espúrias, apear do poder quem a ele chegou por meios legítimos. Já se vê que só pode ser delírio, ou exacerbada paixonite política, falar em golpe relativamente ao processo a que hoje responde a senhora Roussef. O impeachment é instituto previsto na Constituição da República. Suas regras estão claramente delineadas na lei. Se estão sendo cumpridas a Constituição e as leis, não consigo vislumbrar onde está a deslealdade de que cuida o dicionarista.

Que o processo é traumático e que mexa com interesses da maior relevância, não o posso negar. Mas daí a ver nele algo que se assemelhe à quebra da normalidade democrática vai uma distância abissal. Só me resta, assim, recomendar aos partidários da senhora Roussef que providenciem a substituição dos borzeguins por calçados adequados. Seria mais inteligente e, por óbvio, menos idiota.

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