Félix Valois

O texto abaixo foi publicado nos idos de 1996, no hoje extinto Jornal do Norte. Relendo-o, impressionou-me verificar que os fatos nele relatados, cuja autenticidade posso garantir, permanecem atuais, embora já decorridas quase duas décadas. Vejamos:

“Como se não bastasse o caos visivelmente reinante nas maternidades públicas do Estado, onde mulheres são obrigadas a parir pelo chão, agora foi a vez de uma entidade particular fazer tábua rasa dos mais comezinhos princípios de respeito ao ser humano, deixando morrer um bebê por falta de assistência e entregando ao pai o cadáver envolto num saco de lixo.

É miséria demais, bradaria o poeta baiano, por certo, apesar de sua genialidade, incapaz de compreender como pessoas teoricamente livres podem receber tratamento incompatível até com a brutalidade das senzalas.

Incalculável a dor dos pais, desnecessário dizer que a sociedade civil espera e exige que os responsáveis por esse episódio de terror explícito recebam a devida reprimenda legal, de tal maneira que o exercício da medicina não se veja maculado e comprometido pela ação de mercenários, daqueles para quem o dinheiro está acima da vida.

De um lado, a tragédia pura e simples. De outro, para cumprir a inexorável lei da dialética, a galhofa em que se envolveram policiais desta cidade que já foi sorriso e cujo relato mereceria a pena privilegiada de Ribamar Bessa.

João (é claro que a semelhança do nome com pessoas vivas terá sido mera coincidência) é um dos muitos brasileiros cujo hobby é o consumo da canabis sativa, plebeiamente conhecida pela alcunha de maconha e que não entra no catálogo da Souza Cruz.

Esse fato, de raríssima incidência no meio social caboclo, chegou ao conhecimento dos mantenedores da ordem e, de pronto, foi providenciada diligência para recolher aos costumes o indigitado poluidor do meio ambiente e dos próprios pulmões.

Chegada a caravana ao local do crime, o João, que não é leso, estava viajando, não se sabe até hoje se efetivamente ou apenas na realidade virtual produzida pelos eflúvios da marijuana.

O certo é que do João mesmo não se encontrou nem a sombra, de sorte que parecia frustrada essa mega-operação destinada a pôr um fim no crime organizado e na criminalidade violenta.

Mas eis senão quando os treinados e aguçados ouvidos dos agentes da lei foram feridos pelo latir agudo da Morena, uma fila brasileira, que o João, entre um baseado e outro, alimenta e acaricia no quintal de sua residência.

Estava resolvido o imbróglio, por meio de uma solução que nem o saudoso Stanislaw Ponte Preta teria imaginado para colocar no samba do crioulo doido.

Como a prisão do João era imperativo da segurança pública e exigência da própria segurança nacional, deram voz de prisão à Morena e lá se foi ela, entre um rosnar e outro, dormitar numa cela da cadeia, condicionado seu retorno à liberdade ao comparecimento do maconheiro, para substituí-la no cárcere.

Não sei se algum coleguinha inovou nos meandros do processo penal, impetrando o primeiro hábeas corpus canino da história do judiciário brasileiro. Também desconheço se o amor do João pela cadela era tão grande a ponto de levá-lo ao sacrifício exigido.

Sei apenas que, entre tragédias e besteiras, este povo vai dando um jeito de viver com o salário mínimo do real”.

Cuido não ter exagerado na observação introdutória sobre a atualidade dos fatos. O sistema de saúde permanece um caos e a segurança pública ainda está longe de alcançar o nível ideal para uma cidade que atualmente soma dois milhões de habitantes. É certo que o chamado “padrão FIFA”, seja lá o que isso signifique, nos mostrou que é possível estabelecer e cumprir regras que atendam às exigências mínimas de organização. Os repetidos elogios a Manaus são disso prova inconteste. Manauara fervoroso, insisto em acreditar que esse exemplo permanecerá como o verdadeiro “legado da Copa”, agora que ela continuará sendo disputada em outras plagas.

De resto, que venham o Chile e quantos mais ainda resistirem. De minha parte, continuo convicto de que, a 13 de julho, estaremos com a taça do hexa na mão, e cada vez mais certos da inteira procedência dos dizeres de um adesivo recentemente lançado na cidade: “Fora Dilma. E leva contigo o PT”. Será felicidade demais se as duas coisas realmente acontecerem.

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