Os poucos que me leem estão cansados de saber que a rua Leonardo Malcher da minha infância é quase uma fixação nas elucubrações deste velho. Não é apenas a lembrança da primeira idade, com tudo o que ela tem de sentimental, seja pela alegria, seja pela tristeza. É o ambiente em si que me fascina. Parece-me tão distante no tempo, mas me permite ver seu absoluto descompasso com a realidade de então. Já o disse: não vivíamos propriamente no século XX. A Leonardo tinha suas peculiaridades que permitiam detectar uma sobrevivência tardia da Idade Média, com toda a sua mística de medos e ilusões, de mitos e crenças, como se fora um feudalismo sem uma clara distinção entre senhores e vassalos.

A luz elétrica, tive oportunidade de ponderar, era uma raridade. Quase inexistente. E a escuridão da noite, apenas sutilmente perturbada pelas chamas das velas e das lamparinas, era o cadinho propício para o desenvolvimento dos temores supersticiosos, nos quais as almas do outro mundo ocupavam lugar de indiscutível destaque. As histórias proliferavam e, como disse de outra feita, até acreditávamos que determinada senhora era capaz da incrível performance de se transmudar em porca em certas épocas do ano.

Efeito indiscutível da arraigada educação religiosa, no nosso caso, católica sob todos os aspectos. A devoção era um dever e nem Torquemada poderia ter noção mais precisa e exata do que haveria de configurar uma heresia. Os dogmas, por o serem, eram intocáveis, sem réplica nem tréplica. O pecado era o caminho certo para o fogo eterno e só as virtudes consagradas tinham o condão de permitir que o vivente aspirasse à suprema glória de conhecer o paraíso.

Ali, nesse ambiente, vivia dona Joana Galante. Era uma senhora como outra qualquer. Era negra, educada e elegante. E era umbandista. Para ser mais fiel ao vocabulário da época, era macumbeira. Só por isso, por esse horrendo crime, sofreu da banda podre, para usar uma expressão bem ao gosto do meu amigo Alfredo Moacyr Cabral. Sua casa ficava a uns cento e cinquenta metros da de meus pais. Era um modesto chalé, com um vasto terreno frontal e lateral, onde se desenvolviam os rituais daquela concepção religiosa. A lembrança é tênue, pois falo do fim dos anos quarenta, quando não tinha mais que seis anos de idade. Mas os enfeites do terreiro, o rufar dos tambores e o pau de sebo, ainda os recordo, pois eram indispensáveis nos dias de festa do umbandismo.

Também não esqueço de que dona Joana Galante de vez em quando era vítima da ação policial, eis que a autoridade se julgava apta a lhe tolher a liberdade pelo simples fato de que ela não frequentava a igreja católica e – que coisa terrível – “fazia macumba”. Meu pai e minha e mãe, católicos de carteirinha, sempre a respeitaram e não foram poucas as vezes em que o velho Valois foi instado a interferir para colocar termo nessas manifestações de intolerância que, em retrospectiva, só confirmam aquilo de que falei sobre o ambiente do medievo.

Anos depois, muitos anos, em uma campanha política, eu a encontrei em seu novo espaço, um terreiro no bairro de São Jorge. O tempo já se fazia sentir, mas ela continuava altiva, consciente da importância de seu papel como guia espiritual dos adeptos de sua seita. Quando soube de quem eu era filho, dispensou-me carinho especial e teve a supina gentileza de me colocar em lugar de destaque para assistir aos trabalhos das mães e pais de santo, na evocação de seus orixás.

Tributo-lhe minhas homenagens, dona Joana Galante, mãe de muitos santos e de muita gente.

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