Quando eu era pequeno, não havia árvore de natal em casa. Nossa mãe (éramos sete) armava um presépio ornado por samambaias, onde um espelho barato, cercado por musgos, fazia as vezes de um lago. Nele, patos e cisnes, pequenos e de louça, passavam a ideia de flutuação, transmitindo, como em tudo na época, uma aconchegante tranquilidade. Era pobre o presépio, como nós. Feito, porém, com tanto amor e carinho que aquela arte tosca e caseira traduzia com perfeição o que, numa família católica, era o verdadeiro espírito de natal. Dava gosto ver os bonecos dispostos na manjedoura improvisada, em cujo cimo um raquítico anjo de barro desfraldava a faixa com a conclamação: “Gloria in excelsis Deo”.

Como era longo o tempo entre uma festa e outra! Em nossas mentes infantis, parecia que um relógio infinito separava os natais, tornando angustiante a espera do momento em que, por obra e graça de um menino supostamente nascido há dois mil anos, íamos escrever as cartas solicitando os presentes que sempre estavam num universo inacessível para nós. Fazer o quê? Éramos crianças e desfrutávamos do privilégio de poder sonhar e acalentar esperanças, sem dar nenhuma importância à não concretização dos sonhos ou à não materialização dos desejos tão ardentemente formulados. Não vinha a bicicleta da carta? Paciência. Nem por isso era menor a alegria com que, saltando da rede pela manhã, o menino desfazia o embrulho embaixo dela colocado, para verificar que o veículo pedido se transformara num caminhão de madeira, a ser puxado na calçada, onde podia haver de tudo, menos tristeza ou reclamação.

Passou. A vida é feita dessa transitoriedade. Resta hoje a fugaz alegria de receber o carinho de filhos e netos, no decurso da mesma festa que tem conotações completamente distintas. De pronto, sumiu a ansiedade da espera pelos natais. Para quem já iniciou a descida da ladeira final, o tempo se traveste de perversa celeridade e vem à lembrança a advertência de Omar Kayam: “Bebe vinho. Tens a eternidade para dormir”.

E, ademais, reduzido a poeira o mito do Papai Noel (atenda ele pelo nome de Père Noel ou Santa Klaus, ou simplesmente de embuste), o que pode um velho pretender das multicoloridas celebrações de fim de ano? Volto à faixa do anjo do presépio: se muitos, com sinceridade ou hipocrisia, continuam a entoar loas a Deus nas alturas, com certeza não se realizou a parte seguinte do cântico: “Et in terra pax hominibus bonae voluntatis”. Primeiro, porque é raro encontrar homens de boa vontade, segundo, porque o ideal da paz na terra continua tão distante quanto a mais longínqua estrela da mais remota galáxia.

Entre guerras e agressões, a humanidade continua firme em seu processo de autofagia, permitindo que a fome e a miséria convivam com a ostentação de minorias privilegiadas. E quer-se resolver o problema com a distribuição de esmolas oficiais, inventando essa praga das “bolsas” e das “cotas”, assim como se se proclamasse: basta que você não morra de fome; não pretenda mais que isso. Ou, pior ainda: não queiram que as raças sejam olhadas como iguais, sem nenhuma diferença entre elas.

Restam apenas as saudades das ingenuidades da infância. Como era doce querer a bicicleta, mas ficar feliz com o caminhão de madeira. Não saber que muitas das pessoas que assistiam à Missa do Galo (havia isso) não estavam nem aí para as milhões de crianças às quais não era dado sequer o direito da felicidade de substituir os quitutes da ceia natalina pelo mísero pedaço de pão que lhes matasse a fome. Não ter noção de que o egoísmo e a crueldade são marcas indeléveis dos que forjam o poder no cadinho da ambição pura e simples.

A sucessão dos anos não logra mudar essa perspectiva amarga e, sendo assim, os desejos que hoje formulo são muito singelos e só posso dirigi-los a meus netos. Peço a Bruna, Luís Carlos, Fábio Junior, Lauro, Luciana, Helena, Ayla e Catarina que não deixem, por favor não deixem (ou, pelo menos, façam de tudo para não deixar) que os seus netos vejam o mundo como o vê este velho que tanto os ama. Incutam-lhes o respeito por todos os seres humanos, o amor pela Pátria, a correção de caráter e a fraterna solidariedade dos que conseguem compreender que ninguém é uma ilha. Digam-lhes, como disse o poeta: “Somos todos iguais, braços dados ou não”.

De qualquer forma, boas festas e feliz ano novo para todos.

P.S. – Estarei ausente deste espaço nas próximas duas semanas.

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