Ontem à noite sonhei que uns meninos da minha rua colocavam uns galhos de árvores bem na frente da minha casa. Tirando força não sei de onde, fui até eles e perguntei por que eles estavam fazendo aquilo. Um garoto, parecendo ser o líder da tropa, me disse: — “O senhor é mal visto na rua. Ninguém gosta do senhor aqui”.
Fiquei sem chão! “Como podem pensar assim? Será que eles ou os pais deles não percebem que Manaus tá pegando fogo?”, pensava. Foi quando outro garoto se aproximou de mim e me disse: — “Não fica assim não tio, só estamos fazendo o que nos mandaram fazer”. — “Como assim?”, indaguei-o. — “Tá vendo aquele senhor ali” — disse-me apontando para o vizinho da esquina. — “Foi ele que nos pagou para colocar esses galhos aqui, na frente da sua casa”.
Sai, sonambulando pela rua, agarrado no braço daquele garoto. Os outros garotos seguiram-nos, de punhos serrados, parecendo uma marcha dos sem terra. — “O que o senhor fez foi muito grave, sabia! Não se faz isso nem com o seu pior inimigo”. — “E o que eu fiz?”. — “O senhor sabe exatamente o que fez”.
À primeira vista, o vizinho jurou-me que não fez nada. Que aqueles garotos eram trombadinhas e que não mereciam a minha atenção. No entanto, à porta de seu supermercado, uma velhinha, de seus mal vividos oitenta anos, encarquilhada e cifótica, gritava sem parar: — “Toca fogo filho, toca fogo. Não há outra forma mais eficiente de limpar o quintal”. O que o seu filho repreendeu, firmemente: — “Mamãe, pare com isso já!”. Era aí que a velha repetia com mais força ainda: “Toca fogo filho, toca fogo. Não há outra forma mais eficiente de limpar o quintal”. — “Não liguem para ela. Ela está velha e variando”.
Foi quando o líder daqueles garotos pediu a palavra e começou a falar: — “Foi o senhor sim que nos mandou tocar fogo naqueles galhos. O senhor até nos adiantou 50 reais”. “Quando à rua inteira estiver coberta e fedida à fumaça, vocês veem aqui pegar o resto do pagamento, foi o que o senhor nos disse” — falou outro garoto mostrando uma nota de 50 reais.
Depois, como sempre acontece na polícia brasileira, que nunca está do lado do cidadão e sim de quem lhe paga mais, a polícia de choque chegou para desbloquear a rua, os garotos e eu fomos enxotados, sem antes, claro, levar umas cacetadas nas costas. — “Saiam daqui seus vagabundos, seus arruaceiros, seus maconheiros, seus baderneiros”, gritava o comandante daquela operação.
Quanto mais tentávamos dizer que não éramos nós os culpados por todo aquele fumaceiro e que não precisava de toda aquela violência, mais eles nos batiam. Era pancada para todo lado. Crianças, adolescentes, jovens, idosos, doentes, mulheres grávidas, todos apanhavam.
Nesse exato momento eu acordei. Sentia as pernas bambas e a costa arder, parecendo que aquelas pancadas tinham sido reais. Abri a janela e vi o céu coberto de fumaça. Liguei o rádio, na estação de sempre, para ouvir as noticias, mas invés disso tocava uma música do grupo de rock brasileiro Titãs, que dizia: “O problema não é meu. O paraíso é para todos. O problema não sou eu. O inferno são os outros. O inferno são os outros”.
Ofegante e em passos lentos, dirigi-me à delegacia mais próxima da minha casa. A cor das casas era de um cinzento monótono, salpicado de manchas em tonalidades de preto e marrom, de tanta sujeira e fumaça não conseguia respirar direito. Lá fui informado para procurar a Secretaria de Meio Ambiente. Antes, porém, procurei a Associação de Moradores, mas nem sinal.
A cidade toda fedia a enxofre e a maus-tratos. Por incúria dos prefeitos ou simplesmente por incapacidade, ninguém fazia nada. Quanto aos cidadãos, ninguém cobrava nada das autoridades.
— “Tem certeza que o senhor quer fazer a denúncia?”, perguntou-me a atendente da Secretaria de Meio Ambiente tentando me persuadir do contrário. — “Sim, tenho!”, respondi. — “O senhor sabe que tem gente poderosa por trás de todas essas queimadas não sabe?”. — “Sim, eu sei!”. — “E mesmo assim o senhor quer continuar com a denúncia?”. — “Sim, eu quero!”. — “Ok, então vamos continuar”, disse-me. Em seguida, ordenou-me: “Sente-se aqui”.
Quando coloquei o pé na rua eram três horas da tarde. “Não se brinca com a vida de ninguém”, pensei. E para aliviar a dor de cabeça que sentia, comecei a cantarolar o refrão de “Divino Maravilhoso” de Gal Costa: “É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte”.
Luís Lemos é professor, filósofo e escritor, autor, entre outras obras de: “Filhos da quarentena” e “Amores que transformam”.
Instagram: @luislemosescritor