Nem sempre as legislações traduzem o que veiculam. Quando o conteúdo é posto através dos números a coisa muda de figura. Pensando nisso, abordo o teor da PEC dos gastos públicos (PEC 55/2016) por meio deles, a partir de uma singela simulação.

Boa leitura!!

Alipio Filho

Como ficará a PEC 55/2016 na prática?

Como é sabido, a PEC 55/2016/Senado, que tramitava na Câmara dos Deputados como PEC 241/2016, fixa um teto para os gastos do governo federal com suas despesas primárias para um período de 20 (vinte) anos. Por despesas primárias, entenda-se três blocos de despesas: (i) a folha de pagamento e todos os seus encargos, (ii) os gastos com a manutenção da máquina (água, energia elétrica, telefone, conservação, segurança, etc.) e (iii) os investimentos. A PEC é dirigida apenas à União, não sendo aplicada aos estados e municípios.

A PEC 55/2016 acrescenta os artigos 101 a 105 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Logo no art. 102 ela prescreve: Será fixado, para cada exercício, limite individualizado para a despesa primária total do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, inclusive o Tribunal de Contas da União, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União.

Por sua vez, o § 3º do mesmo dispositivo diz como tais limites individualizados serão atualizados a cada exercício:

§ 3º Cada um dos limites a que se refere o caput equivalerá:

I – para o exercício de 2017, à despesa primária realizada no exercício de 2016, conforme disposto no § 8º, corrigida pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de janeiro a dezembro de 2016; e

II – nos exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do IPCA, publicado pelo IBGE, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de janeiro a dezembro do exercício imediatamente anterior.

Na prática, como funcionará a aplicação desses dispositivos? Algumas singelas simulações talvez coloquem luz sobre eles.

Admitamos que a PEC 55 seja aprovada ainda este ano (2016) e exatamente do jeito que está. Como ficariam os gastos do governo federal para 2017?

Suponhamos que as despesas primárias realizadas no governo federal fossem as seguintes (seguindo o que dispõe o art. 102):

Legislativo: $ 100

Judiciário: $ 200

Executivo: $ 500

MPU: $ 80

TCU: $ 80

DPU: $ 40

Total: $ 1.000

Esses são os limites individuais aludidos no dispositivo. Tais gastos, de acordo com o § 1º do art. 102, abrangem toda a administração direta e indireta, inclusive as empresas estatais dependentes. Do total das despesas do Poder Executivo ($ 500), $ 100 corresponderam a gastos com saúde e outros $ 100, a gastos com educação. O total com ambos foi, portanto, $ 200.

Admitamos ainda que o IPCA em 2016 seja de 10%. Nesse cenário, qual o limite de gasto do governo federal para 2017? Simples: $ 1.100 ($ 1.000 x 10%). Quanto, a mais, a União poderá gastar? Resposta: $ 100. Ou seja, somente o que for reposto a título de índice inflacionário. Mas esse limite global terá que respeitar cada limite individual, dessa forma:

Legislativo: $ 100 x 10% = $10

Judiciário: $ 200 x 10% = $ 20

Executivo: $ 500 x 10% = $ 50

MPU: $ 80 x 10% = $ 8

TCU: $ 80 x 10% = $ 8

DPU: $ 40 x 10% = $ 4

Total: $ 1.000 x 10% = $ 100

Considerando o índice inflacionário, os tetos máximos com despesas primárias de cada poder/órgão para 2017 seria:

Legislativo: $ 100 + $10 = $ 110

Judiciário: $ 200 + $ 20 = $ 220

Executivo: $ 500 + $ 50 = $ 550

MPU: $ 80 + $ 8 = $ 88

TCU: $ 80 + $ 8 = $ 88

DPU: $ 40 + $ 4 = $ 44

Total: $ 1.000 + $ 100 = $ 1.100

Aqui uma importante particularidade com relação aos gastos com saúde e educação. Determina o art. 104 da PEC 55 que as aplicações mínimas em saúde e educação serão corrigidas também pelo IPCA: A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198 e o caput do art. 212, ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do § 3º e do § 5º do art. 102 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Portanto, está garantida a aplicação do mínimo em saúde e educação. Porém, com uma inovação: a aplicação no exercício atual tomará por referência a aplicação feita no exercício anterior, acrescida do índice inflacionário. Ou seja, o parâmetro para os gastos em saúde e em educação passam a ser mensurados não pelo exercício atual, conforme sempre ocorreu, mas pelo exercício imediatamente anterior. Inconstitucionalidade? Muito provavelmente.

Considerando essas novas regras, o valor máximo a ser aplicado em saúde e em educação em 2017 será:

1 – Saúde: teto máximo em 2017 = valor gasto no ano anterior ($ 100) x IPCA/2016 (10%) = $110

2 – Educação: teto máximo em 2017 = valor gasto no ano anterior ($ 100) x IPCA/2016 (10%) = $110

Tais valores corresponderiam a subtetos. Eles terão que ser subtraídos do teto do Executivo federal, por serem recursos de aplicação compulsória. Conforme vimos, a fatia do Executivo no bolo orçamentário para 2017 foi calculado em $ 550. Deduzindo-se os gastos com educação ($ 110) e saúde ($110), restariam $ 330 “livres” (sem considerar os demais recursos vinculados) para serem aplicados pelo Executivo nas demais despesas primárias. O grande problema que vejo aqui é que se os gastos com saúde e educação exigirem uma aplicação maior, a priori, não haverá como ampliá-lo já que o limite é linear. Existe a possibilidade de abertura de créditos extraordinários (inciso II, § 6º, art. 102, da PEC), mas teria que está caracterizada uma situação anômala – decorrente de guerra, comoção interna ou calamidade pública -,conforme prevê o § 3º do art. 167 da CF. A questão é: a falta de medicamentos nas clínicas, postos e hospitais públicos (no caso da saúde) poderá ser considerada como uma situação anômala? Para uns sim, para outros talvez não. E para o governo federal? Será que a tomada de decisão nesse sentido não esbarrará nas conveniências políticas? O dispositivo corresponderá a um “cheque em branco” nas mãos do chefe do Poder Executivo federal? Muito provavelmente. Ou seja, independentemente de quem estiver no comando, deveremos contar com uma boa dose de sensibilidade do mandatário maior para que os serviços de saúde sejam contemplados com créditos extraordinários. Isso sem falar no possível embaraço jurídico que a medida poderá suscitar.

Mais: no nosso exemplo hipotético, os recursos “livres” ($330) terão que ser distribuídos entre as despesas com a folha e encargos, os gastos com a manutenção da máquina governamental e os investimentos. Ora, sabemos que os investimentos públicos são molas propulsoras de emprego e renda em qualquer nação do mundo. Doravante – melhor dizendo: por 20 anos – as aplicações nessa modalidade de despesa primária concorrerá diretamente com a massa de despesas com a folha e de manutenção. Também aqui teremos de contar com uma boa dose de sensibilidade do chefe do Poder Executivo federal para autorizar gastos nessa modalidade.

Lembrando que o Executivo só fará jus a uma fração do teto global, dada a autonomia dos outros poderes (legislativo e judiciário) e órgãos (TCU, MPU e DPU). E se os tetos dos demais poderes e órgãos não forem suficientes? O que fazer? Resposta: não sabemos. Só sabemos que a PEC 55 é uma navalha afiada, que não admite meio termo na gestão dos recursos públicos.

Tendo em vista que a previsão para ocorrer a primeira revisão da PEC 55 só se dará após 10 anos de sua vigência, esse será o período mínimo do “aperto orçamentário”. Conforme já tive a oportunidade de me manifestar aqui mesmo na minha Coluna, entendo esse prazo como demasiadamente longo. Em países onde foram adotadas medidas similares – como Finlândia, França e Holanda – o prazo revisional foi fixado em torno de 4 anos. Poderíamos também adotar a mesma solução.

Outra questão que precisa ser posta é que a PEC 55 nada disse a respeito da destinação das receitas primárias que ultrapassarem o teto por ela estabelecido. Onde elas serão aplicadas? Bem, por exclusão, nas despesas nominais, representadas pelos gastos com os serviços da dívida pública (juros, comissões) e sua amortização. E por que não destinar parte desses recursos no abatimento do déficit primário, estimado para 2017 em 170 bilhões de reais? Resposta: não sabemos.

Ou seja, é indiscutível a conveniência da PEC 55 no atual cenário econômico nacional. Todavia, ela precisa e merece ser melhorada sem, contudo, desvirtuar seus propósitos. Fica a dica.

ALIPIO REIS FIRMO FILHO

Conselheiro Substituto/TCE-AM

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