Por mais que eu tente evitar, são recorrentes as lembranças das excentricidades do senhor Travassos. Entre uma ida e outra ao fórum, pego-me matutando sobre algumas coisas curiosas que aquela figura magra, reservada e circunspecta pensava e fazia. Por exemplo: como era um homem extremamente pudico, tinha uma solene implicância com a sílaba formada pela junção da consoante “c” com a vogal “u”. “Inadmissível – dizia ele – que alguém pronuncie algo tão chulo e ofensivo mesmo à própria língua materna”. E se danava a vociferar que, afinal de contas, o vernáculo é rico e sinônimos não faltavam para impedir o que, a seus olhos, não passava de relaxação das mais condenáveis. Assim é que, quanto ao monossílabo que as duas letras produzem, a preferência do nosso herói recaía singelamente na palavra “bunda”. A justificativa era enfática, de modo a não admitir controvérsias: “O vocábulo, além de ser mais bonito e sonoro, não nos remete para pensamentos imorais”. E, assim pensando, melhor fazia, de tal maneira que em qualquer palavra onde se apresentasse a tal sílaba ele, prontamente, escrevendo ou falando, operava a substituição que lhe parecia adequada, convencido de que agia em nome da moralidade e da pureza da língua.

Vai daí que, vivendo aqui, neste imenso, majestoso e querido Estado do Amazonas, o senhor Travassos dispunha de campo mais do que fértil para levar adiante sua cruzada de purificação, até pela intensa utilização que os nativos fazemos de palavras de origem indígena. No festival de Parintins, à guisa de exemplo, não foram poucas as pessoas que o ouviram proclamando a beleza da “bundanhã-poranga do Caprichoso” e a elogiar o perfeccionismo da apresentação da moça, enquanto desancava o “contrário”.

Nos mercados e feiras da capital, ele se deixava soltar como papagaio ao vento quando a sua mulher (que ele chamava de “minha senhora”, dando um tom fechado ao “o”, assim como se houvesse um acento circunflexo) o incumbia de comprar peixes. “Não quero – disse ele certa vez ao feirante embasbacado – esse pirarubunda porque ele não me parece muito saudável. Dê-me, então, uma enfieira de pabundas e outra de bundaiú-bundaiús”. Foi alegre e serelepe para casa, mas teve que voltar porque a senhora o admoestou severamente por ter esquecido de comprar as bundarimatãs.

Travassos cumpria rigorosamente seus deveres religiosos. Católico (menos mal), não perdia a missa dominical e, pelo menos quatro vezes ao ano, ia ao confessionário relatar os dissabores que, eventualmente, poderiam tê-lo levado a ofender algum dos mandamentos. Em assim sendo, tinha relativa intimidade com o pároco. A este, o nosso Travassos, depois de ler notícias preocupantes sobre o comportamento do alto clero, na sede mesma do Vaticano, desabafou: “Reverendo, não consigo compreender como é que o Santo Padre pode conviver com as artimanhas dessa tal de bundaria romana”. Imagina-se o constrangimento do religioso, mesmo ciente que era das particularidades linguísticas do nosso bom homem.

Travassos sempre teve raiva incontida de um tipo de seres humanos que, genericamente, ele chamava de “bandidos”. Tais pessoas, para ele, não tinham nenhum direito de desfrutar do convívio dos seus semelhantes porque representavam a própria essência do mal. Proclamava – sem saber que com tal slogan poderia ter chegado à presidência da República – que “bandido bom é bandido morto”. Pois muito que bem. Estava ele à mesa, deliciando-se com o bundacusbundacuz do qual não abria mão no café da manhã, quando chamou, alarmado, sua senhora: “Veja o absurdo que está aqui no jornal. O abundasado, cometeu um crime gravíssimo, foi a essa tal de audiência de bundastódia e o juiz mandou o infeliz para casa. Não dá para entender. Acho que essa justiça está se tornando uma grande esbundalhambação”.

Conta-se que ele enfrentou problemas muito sérios num hospital da rede pública quando sua senhora, então grávida, foi a uma consulta de rotina e o médico detectou uma anormalidade que exigiu imediata intervenção cirúrgica. A explicação foi dada ao Travassos mais ou menos nestes termos: “Infelizmente a gravidez não podia chegar a termo. O bebê morreu e tivemos que realizar uma curetagem. Posso lhe dizer que a mãe está bem e não corre nenhum risco”. Foi um deus-nos-acuda. Travassos, literalmente possesso, partiu para cima do médico e vociferou: “Olhe aqui, doutor. Pelo que me consta, desde os tempos paradisíacos de Eva, a mulher sempre pariu pela frente. Por que, então, tinha o senhor que ir mexer nas rotundidades posteriores da minha senhora e realizar essa de tal de bundaretagem?” Com a interferência da assistência social, a questão foi contornada.

Resta lembrar que Travassos, sempre detalhista e cuidadoso, já escolheu a inscrição que deve figurar no seu túmulo. Será assim: “Aqui jaz Travassos, bundajas virtudes o levarão ao reino dos céus”.

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